Alex

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O Alex tinha vinte e poucos anos quando um decreto--lei o salvou. Nasceu e cresceu num lugar, dez, quinze casas, cinquenta quilómetros a sul de Lisboa, onde ainda há pescadores e agricultores. Todas as noites o Atlântico desaparecia-lhe da porta da rua e nascia, a norte, um clarão. O clarão era Lisboa, todas as noites, umas vezes um branco forte dentro das nuvens, outras uma luz límpida e transparente no céu preto.

Nesse lugar onde nasceu e cresceu a vida era normal, nem boa, nem má e a escola fez-se com aproveitamento, ficou só uma disciplina para trás. Um dia faria essa disciplina, sonhava vir para a Lisboa que via todas as noites acesa no céu, mas onde tinha estado apenas três ou quatro vezes. Seria o primeiro da sua família próxima a terminar o liceu, a ter um curso, a viver dali para fora. A crise começava a sentir-se ao final do mês, era preciso ajudar os pais, e queria manter o telemóvel e outras coisas já tão normais. Enquanto a escola esperava, o Alex trabalhava, comercial de uma pequena indústria alimentar local. Em poucos meses, a empresa faliu e as alternativas mais óbvias, os supermercados da zona, já não estavam a contratar como dantes.

Um dia a família desorganizou-se e o Alex acabou sozinho em Portugal. E agora, conseguiria voltar a estudar? Deixa, há tantos desempregados licenciados, diziam-lhe. Podia tentar a sorte trabalhando lá fora, juntando-se à parte da família que se mudara, de um dia para o outro, para o Luxemburgo, ou tentar voltar a trabalhar por cá, fazer-se à vida. No fundo, duas não opções, apenas a armadilha social disfarçada de oportunidade. A única opção real, sabia-o, era estudar, terminar o liceu e candidatar-se à faculdade.

Num assomo de determinação que nunca antes precisara de ter, fez-se ao caminho. No início, não pôde contar com o Estado. O sistema não está feito para pré-universitários, já fora do sistema escolar. Com a ajuda de amigos, a coisa resolveu-se. Em poucos meses o liceu estava terminado e o Alex entrava numa universidade pública, na sua primeira opção. Parecia mentira, quando as coisas pareciam sem solução o sonho de ser geógrafo começou a ser verdade.

E pagar os seis semestres do curso? Para isso há bolsas, bolsas do Estado, toda a gente lhe dizia, e residências das universidades, boas. A parte do alojamento foi simples, há lugares disponíveis e a mensalidade da residência (cerca de 70 euros) acresce à bolsa. O problema é que a realidade da bolsa é mais difícil do que uma conversa incentivadora. Primeiro foi preciso explicar às senhoras da bolsa, mais do que é confortável, que a sua história era verdade. Lá acreditaram nele. Mas logo o Alex percebeu que é impossível planificar a vida com base na bolsa, não sabe nem se, nem quanto, nem quando se recebe. Alex soube em dezembro que ia ter bolsa, já com o primeiro semestre terminado. O primeiro dinheiro veio em janeiro, por atacado. Num ano ia receber três mil euros. Pagou as propinas, ficaram dois mil (os bolseiros pagam o valor normal das propinas). Dois mil euros por ano são 166 por mês. A universidade também ajuda com refeições nas cantinas, dois euros e meio cada, cento e trinta por mês para almoço e jantar. Sobram trinta e cinco euros por mês para o resto todo, um euro e quinze por dia para os pequenos-almoços e lanches, livros e material escolar, taxas administrativas, higiene, lavar roupa, saúde, ah, e as refeições de domingo que as cantinas ao domingo folgam, pois, já se sabe, todos os universitários têm famílias à espera com sorrisos e mesas postas para dois fartos repastos dominicais. A conclusão é simples: é impossível sobreviver com uma bolsa.

Podes sempre trabalhar, arranjar um part-time, diziam-lhe. Tentou e não conseguiu.

O Alex é um miúdo normal. Não é um génio, a sua história não vai ser a do menino pobre que ganhou o Nobel da Física. É uma pessoa normal, como a maioria de nós. Os normais podem acabar melhor ou pior, tudo depende das circunstâncias onde nasçam, do berço que os rodeia. Se nada tivesse acontecido, a probabilidade mais certa era o Alex acabar pior do que qualquer dos meus filhos com as mesmas capacidades. A desigualdade social mata os frágeis, mas aos normais prende-os ao fundo, numa morte lenta, hereditária, de olhos abertos.

São precisamente estes normais que mais precisam de um forte empurrão escada a cima. Sobretudo porque a normalidade os cobre de invisibilidade, invisibilidade que não têm os mais pobres ou mais marginalizados. Ao Alex esse empurrão chegou em forma de decreto-lei. Um decreto-lei de 2007, que criou empréstimos para estudantes, garantidos pelo Estado. São empréstimos de garantia mútua que se começam a pagar um ano depois de terminado o curso, durante um prazo até dez anos, taxa baixa, que desce à medida que a média de curso aumenta, condições que se mantêm se não houver chumbos.

Os quatrocentos euros do empréstimo, que um dia vai pagar ao banco, são o que permitem ao Alex recuperar as horas perdidas de quem nasceu noutro fuso social, aprender inglês, viajar, e ter a tranquilidade de poder estudar sabendo que ao fim do mês o dinheiro é certo.

Este decreto de 2007 é um poderoso alavanca vidas, talvez a melhor herança do governo socialista, medida simples e com um custo baixíssimo. Os bancos emprestam, o Estado garante, e nos vinte mil contratos o incumprimento é baixíssimo, ronda um e meio por cento. É um exemplo perfeito do que o Estado deve fazer, até onde deve ir. Mais do que as bolsas, os empréstimos para estudantes reforçam o sentido de responsabilidade e a satisfação do cumprimento.

Um dos meus filhos distingue, na televisão, aqueles que "só inzistem" (os atores) e os que "inzistem mesmo" (os jornalistas, por exemplo). O Alex existe mesmo, e deixou-me partilhar aqui isto tudo. É que se não fossem as letras daquele Diário da República de 7 de setembro de 2007 o Alex não seria hoje um dos melhores alunos do seu curso, porque não havia curso que fosse o seu. A não ser o curso de uma vida adiada.

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