Sagres
De calções cinzentos e T-shirt amarela, Maria entra no campo de futebol sem saber se vai ou se fica. Esconde-se por detrás de uns óculos de aros brancos e não responde às "bocas" do segurança. Maria foi e agora volta. Saiu cedo para uma caminhada, ainda todos dormiam. Não quis ver o desmontar da tenda a poucas horas de Patrice, a estrela do primeiro Surf Fest, subir ao palco montado junto à praia do Tonel, a caminho da fortaleza. Maria virou costas numa altura em que Sagres se prepara para a festa. Ela sai quando todos chegam e há o homem sentado à porta da casa cinzenta e verde. Ao contrário de Maria, não tem nome porque não o diz nem ninguém o chama. Ele fica, como sempre ficou, e vê chegar quem está de passagem. Há-de depois vê-los partir, sentado no mesmo degrau da mesma casa, no fim da festa.
Os que vêm, chegam de mochila às costas e sacos-cama na mão, em carros que já não têm cor, tanto é o pó da estrada. Muitos vão juntar o de Sagres ao que já trazem do Sudoeste, festival mais acima. É uma sujidade que dá para escrever recados. "Paz, amor e reggae"; "Israel vibrations". "We bring the bus, you bring the party", lê-se numa Volkswagen que saiu há três meses da Suíça, já passou por França e Espanha, mas tirou Agosto para fazer surf em Portugal. Este ano, à festa da vila juntou-se a festa do 'surf' e, na manhã de segunda-feira, 14, a terra que nasceu virada para o mar é o estaleiro de um festival.
O campo de futebol do Tonel está transformado em parque de campismo desde sábado. Quem entrar com bilhete para as duas noites de reggae não paga nada. A senha é uma pulseira laranja. Ficam acampados e não sabem da procissão que há-de ir da praia dos pescadores ao cabo de S. Vicente, no dia seguinte. Também quem sempre dormiu na vila pouco sabe de reggae. "É música de surfistas", diz-se pelas esplanadas do centro e repete-se num discurso mais elaborado no recinto que há-de receber sete mil pessoas em cada noite e onde agora se afinam sons. "São nomes pouco conhe- cidos do público em geral, mas muito populares no mundo do surf", afirma um dos elementos da produção do Surf Fest pouco incomodado com a concorrência de Paredes de Coura, umas horas a norte. "Este é um público diferente", atira.
O dia começou tão cinzento quanto os calções de Maria. Às oito da manhã perguiça-se em Sagres depois de uma noite de enchente nos bares que deu direito a corte de estrada e tudo. No porto de pesca da Baleeira não há sinal de nada. Nem de gaivotas. E o mar é um espelho de água que tem um efeito multiplicador de barcos. São só reflexos aumentados pelas luzes ainda acesas dos candeeiros. Sagres acorda tarde. No Água Salgada, onde se aviaram muitos copos até de madrugada, ouve-se Nick Cave ao pequeno almoço, com cereais, mel e sumo de cenoura enquanto um rapaz comenta a foto da saúde de Fidel que está em todos os jornais. Numa esplanada perto da Mareta, outro rapaz só quer saber de vender o bilhete pelo mesmo preço que o comprou depois de ver o tal Patrice. Bebe uma cerveja, mete-se com "as miúdas" e chama-lhes "manas". "Isso é grupo meu, só pensas em guito", responde-lhe um amigo enquanto folheia A Bola e despenteia o cabelo. Têm sotaque do norte que rapidamente adaptam a castelhano na conversa com duas raparigas. "Há muitos que vieram de Guimarães", esclarece o segurança do parque. E de Faro, Portimão, Lisboa. Na bilheteira, alguém pergunta pelo caminho para o Tonel, já de pulseira laranja no pulso. É o sinal para o segurança identificar quem comprou bilhete. "Primeira rotunda à esquerda como quem vai para Penafiel", explica, numa adaptação livre da reposta que conseguiu e seguindo a pé com os amigos e um púcaro preso à mochila.
A festa vai-se compondo; já é mais do que um esqueleto, mas no porto os barcos ainda não estão enfeitados. "Só amanhã", afirma um homem na Estação Salva-vidas. A procissão é produção tantas vezes repetida que se perdeu na memória dos pescadores. Eles sabem-na de cor e não precisam de ensaio-geral. Novo, novo é o festival que lhes passa ao largo mas desse já vai chegando o som. Ecoa nas falésias que abrigam a praia da Mareta por onde vai passando gente, vultos no contra-luz da manhã que parecem num precipício. São sons de tambor que o rapaz que bebe cerveja vai repetindo na mesa da esplanada. É música a anunciar a noite. Vai ser reggae night em Sagres.