Lampedusa
Será útil reler a introdução de Ortega y Gasset à edição francesa, de 1937, da sua obra fundamental, A Rebelião das Massas. Quando o mundo assistia à marcha da Europa para o segundo suicídio, em menos de 30 anos, o grande pensador espanhol escrevia que a unidade da Europa seria inevitável até por pressão externa. E isso poderia ocorrer quando "a trança de um chinês assomasse no cimo dos montes Urais, ou ocorresse uma sacudidela no grande magma islâmico".
Há muito que as tranças chinesas ultrapassaram os Urais, os Alpes e até os Pirenéus. Hoje são os europeus - ainda longe de terem o "governo geral", que Ortega considerava uma necessidade primária de sobrevivência - quem voa para lá dos Urais em direcção à China, para trocar uma parte da sua liberdade pelo alívio da sua dívida soberana, ilustrando com novos tons o conceito de "servidão voluntária", de outro grande e nobre europeu esquecido, La Boétie.
Mas a novidade é a total incompetência europeia perante a violenta sacudidela do "grande magma islâmico", que só agora começa a acontecer. As pessoas que derrubaram ou vão derrubar as ditaduras do mundo árabe não querem ser heróis da democracia, querem pão para si e para os seus filhos. O perdão de Blair ao criminoso de Tripoli, em troca de combustíveis fósseis, simboliza a hipocrisia ignóbil das diplomacias europeias, que agora cortejam o "povo" das ruas. Os europeus gostariam de ser deixados em paz, como de costume, na tarefa de se aborrecerem uns aos outros. Mas desta vez têm mesmo de olhar para o lado. É da natureza do magma espalhar-se. Para os europeus a palavra- -chave não é Cairo ou Tripoli, mas sim Lampedusa.