Um crime na Casa Branca e outro na adolescência: duas séries Netflix
Antes do tema pesado, a diversão americana: quando perguntada sobre a última vez em que houve um cadáver na Casa Branca, uma detetive com indumentária de caça, apaixonada por ornitologia, responde de chofre, sem hesitação, que foi em 1952. A mãe da primeira-dama Bess Truman, Margaret Wallace, que “morreu na cama e nunca gostou do Harry [Truman, o presidente]”. Enfim, a pergunta era apenas retórica, mas eis o estilo de A Residência, série agora disponível na Netflix que leva o género whodunnit (quem matou?) para o território da curiosidade histórica, com bom humor e sem se demitir da missão artesanal do mistério. Apresenta-se então ao serviço, senhoras e senhores, Cordelia Cupp (casting perfeito de Uzo Aduba), investigadora que protagonizará uma longa noite no “maior lugar” onde poderia ocorrer um homicídio - a própria Casa Branca. A vítima? O chefe do staff dessa residência oficial.
Escritos por Paul William Davies, os oito episódios de A Residência, que parecem perseguir o tom “aconchegante” do sucesso Homicídios ao Domicílio, são de uma eficácia rítmica notável. Por um lado, estamos no interior da Casa Branca, na sequência do trágico sucedido, em fase de múltiplos interrogatórios (quando Cordelia Cupp não está no exterior, munida dos seus binóculos, a observar pássaros) e, por outro, num gesto de narração retrospetiva, há uma audiência do Congresso que averigua os acontecimentos dessa mesma jornada de trabalho da detetive particular. Alguém cuja extrema competência leva o agente do FBI, a seu lado, a fazer figura de jarra.
Com citações que vão de Edgar Allan Poe a Hitchcock, o toque de diversão está logo explícito nos títulos de cada episódio e reflete-se numa dinâmica de investigação que passa sobretudo pelo staff da Casa Branca, neste contexto, com um presidente gay e um cenário de relações diplomáticas tóxicas com a Austrália, país convidado na noite em que tudo acontece.
Para animar a festa, chama-se Kylie Minogue, e há ainda uma piada a circular sobre a presença de Hugh Jackman na elite de convivas - mas isso são distrações do alto voo de Cordelia, personagem que estuda os humanos sentados à sua frente como se fossem outras espécies de pássaros... Caso para dizer que este crime “compensa”.
No quarto escuro da puberdade
Num registo completamente diferente, há outro crime a dominar as atenções na mesma plataforma de streaming: a minissérie de que toda a gente fala chama-se Adolescência, é uma produção britânica assinada por Jack Thorne e o ator Stephen Graham, e tem suscitado debate nos últimos dias à volta do tema da cultura misógina que grassa nas redes sociais, um pouco como Baby Reindeer nos pôs a falar de stalking e abuso. Em apenas quatro episódios, escalpeliza-se o caso de um miúdo de 13 anos acusado de matar uma colega.
E o que é que distingue esta série de qualquer outra história tenebrosa? Para além do argumento aberto à complexidade das relações, sem dúvida, a classe firme dos atores e o grande contributo do realizador Philip Barantini, que filma cada episódio num único plano-sequência, concentrando a ação numa experiência intensa de confronto com as diversas camadas dramáticas da verdade.
Barantini já tinha concretizado essa proeza técnica no filme Ponto de Ebulição (2021), também com Graham, que se passa num restaurante, mas aqui a tensão do momento, seja dentro de uma esquadra ou num recinto escolar, carrega todo um processo de delicada análise social.
Começando na detenção do rapaz com cara de criança e terminando no retrato da dor familiar, sendo os dois episódios do meio dedicados ao trabalho dos inspetores da polícia e da psicóloga que avalia o perfil do acusado (cerca de 50 minutos televisivos absolutamente arrepiantes), Adolescência é já um dos títulos que vai marcar os balanços do ano, no que a ficção de topo e pertinência no debate público diz respeito.
Não por acaso, em entrevista à BBC, os criadores manifestaram vontade de mostrar a série no Parlamento britânico, alegando que se trata de um problema com tendência para aumentar.
O que está em causa, especificamente? Digamos, para simplificar, os novos códigos de uma cultura adolescente que se desenvolve no ambiente digital, e que fica cada vez mais inacessível aos adultos - uma cena exemplar desse distanciamento geracional é aquela em que o inspetor responsável pela acusação se vê esclarecido pelo próprio filho sobre o significado de certos emojis usados em comentários no Instagram, e sobre o termo incel, aplicado aos celibatários involuntários. A expressão do polícia a tentar perceber a informação deste novo mundo online é, afinal, a expressão de muitos pais que ignoram a violência escondida em caixas de comentários. Adolescence veio alertar para ela. Mas acima de qualquer foco temático está a integridade do drama. O drama que lida com o crime.