RASI às claras

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O despertador tocara cedo e a máquina de café lá de casa avariara-se pela 27.ª vez. No corre-corre para chegar a tempo ao serviço, a retemperadora ‘bica’ matinal não chegou a acontecer. A reportagem prolongou-se bem para lá da hora de almoço e, agora, a viagem de regresso a Lisboa faz-se sob um forte sol de inverno. Um dos piores inimigos do condutor, o sono, começa a dar sinais.

Encosto nas Caldas da Rainha e procuro um café. Ao balcão estão dois empregados, um português e outro brasileiro, cercados por embalagens de cavacas, suspiros e outros doces da região. Em frente da caixa registadora está uma pequena pilha de jornais, de distribuição gratuita. A manchete surge em letras garrafais: “Nova rixa no Martim Moniz acaba com facadas e sangue na rua”. O jornal é o Folha Nacional, propriedade do Chega, e nas suas oito páginas são vários os títulos dedicados à imigração e criminalidade.

Tal como acontece nas redes sociais, com muito mais visibilidade, também no papel o partido de André Ventura não perde a oportunidade de disseminar a colagem da comunidade imigrante ao crime. Problema: uma peça-chave para a análise da criminalidade em Portugal, o Relatório Anual de Segurança Interna (RASI), não divulga as nacionalidades de quem comete os crimes e essa opacidade resulta em falta de informação fidedigna e objetiva que permita traçar um retrato real da situação.

Isso pode estar em vias de mudar. O Governo mostrou abertura para aprovar uma proposta da IL que visa incluir as nacionalidades e género dos detidos no RASI. Há quem tema que, com isso, se abra uma espécie de “caixa de Pandora”, como disse Alexandra Leitão, líder parlamentar do PS e candidata à Câmara de Lisboa, e que no futuro surjam pedidos para se listarem outros dados, como etnias e religião. Mas é aqui que o poder político deve intervir e estabelecer o que é relevante, ou não, divulgar.

Na verdade, se hoje sabemos a nacionalidade dos turistas que vêm a Portugal, dos visitantes dos museus, dos estudantes nas escolas e universidades públicas, porquê não revelar abertamente a de quem comete crimes no país? Não só a nacionalidade, mas também se têm autorização de residência em Portugal (imigrantes) ou se são apenas cidadãos estrangeiros de passagem pelo país, já que a criminalidade transnacional também é frequente e pode contaminar as estatísticas.

Disponibilizar mais informação ajuda a dissipar as cortinas de fumo atrás das quais há quem se esconda para espalhar as ‘suas verdades’, quer à direita, quer à esquerda do espetro político. É também um passo no sentido de capacitar o leitor. Dar-lhe ferramentas para que, quando pega num jornal num café das Caldas da Rainha, saiba discernir entre o que é realidade e propaganda, entre o que é, de facto, um problema que precisa de ser corrigido e o que é empolado apenas para servir agendas políticas.

Editor Executivo do Diário de Notícias

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