"E muito frustrante, é uma desilusão. Não via isto como exclusivamente um negócio, achei que estava a contribuir para uma solução. Claro que estou a pagar outra casa, onde vivo com a minha família, e faz-me falta o dinheiro, mas saber que ao fim de um ano o apartamento está ali vazio, com tanta gente a precisar de um sítio onde morar, é muito mau. E pensas: é assim que gastam o dinheiro dos contribuintes?”As palavras são de Filipe Ribeiro, proprietário de um T1 de 34 metros quadrados na Avenida Afonso III, em Lisboa, que desde fevereiro de 2024 está arrendado ao Estado português, através do Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU), no Programa Arrendar para Subarrendar (PAS).Lançado em 2023, pelo último governo de António Costa, como parte do pacote Mais Habitação, o PAS tinha como objetivo “aumentar o stock de habitação pública”, arrendando, “em mercado”, imóveis a privados “para posterior subarrendamento a preços acessíveis (com taxa de esforço máxima de 35% do rendimento). A meta inicial, como foi então anunciado e lembra ao DN a ex-ministra da Habitação Marina Gonçalves, era de 320 casas.Desde 2023 foram, de acordo com a informação fornecida pelo IHRU em resposta às perguntas do DN, “angariadas” e arrendadas 290 casas para o programa. Porém apenas 62 estão ocupadas, a maioria (76%), segundo informação do IHRU, com jovens até aos 35 anos, e as restantes a famílias monoparentais. A casa de Filipe é pois uma das muitas – quase 80% do total – arrendadas pelo IHRU que se mantêm vazias, a maioria das quais na Área Metropolitana de Lisboa (AML), enquanto o Estado gasta milhões a pagar as respetivas rendas..IRHU paga rendas “de mercado” à Segurança Social e à Santa Casa .Oferta de casas para arrendar dispara 81% no arranque do ano. Em 2024, dos cinco milhões alocados no Orçamento de Estado para o PAS, o IHRU despendeu 2,8 milhões em rendas, numa média de 1180 euros mensais por cada fogo. Atendendo a que só 21% dos imóveis em causa estão ocupados, o desperdício, num cálculo simples, foi de 2,2 milhões de euros só no ano passado – e continua este ano, já que nenhuma das casas vazias foi entretanto atribuída.E não é que tenham faltado candidatos: ainda segundo a informação prestada ao DN pelo IHRU, foram 2732 os inscritos nos seis concursos/sorteios ocorridos até novembro de 2024; quase o décuplo das casas disponíveis. Porém só 2,3% desses candidatos (os referidos 62) terão conseguido uma casa.Desde logo porque houve, desde o primeiro sorteio, ocorrido em novembro de 2023, todo o tipo de problemas. Incluindo esperas de meses pelas casas atribuídas, e até concursos anulados. Caso dos dois últimos, em outubro de 2024, correspondentes a 130 casas, devido ao que o instituto, na informação enviada ao DN, descreve como “uma anomalia informática” e que, segundo foi explicado ao jornal por alguém com conhecimento do processo, consistiu num “erro” na seriação dos candidatos (erro para o qual Benjamim Pereira, presidente do IHRU desde setembro de 2024, assumiu ao Jornal de Notícias não ter explicação, anunciando uma “auditoria interna”, que o instituto informa estar ainda em curso).Deu-se igualmente o caso de existirem, devido às especificações do programa, desencontros entre os agregados candidatos e as tipologias dos imóveis – um problema de desenho que o PAS tem em comum com o Programa de Arrendamento Acessível (o qual, lançado em 2019, foi rebaptizado de “programa de apoio ao arrendamento”, mantendo o acrónimo PAA). Isto porque por exemplo um T3 só pode, independentemente da sua dimensão, ser entregue a uma família de três pessoas; havendo entre os fogos arrendados no PAS 82 desta tipologia, 18 T4 e seis T5, em não existindo candidaturas de famílias com as dimensões exatas, as casas não são atribuídas.Em comum na maioria das queixas – tanto dos prospetivos inquilinos como dos senhorios que aderiram ao PAS – está a inoperância do IHRU, que se notabiliza por não responder a pedidos de esclarecimento, nem sequer atendendo telefones. De resto, quando passaram já mais dois meses sobre a anulação dos últimos concursos (ocorrida em novembro), o IHRU não tem prevista data para efetuar novos sorteios; em resposta ao DN, certifica que “relativamente aos sorteios anulados a análise interna está a decorrer, prevendo-se a abertura de um concurso a breve trecho para atribuição das restantes frações”.“Já tinha pensado que em mudando o governo deviam suspender o programa”E se não têm saído casas também não entraram mais nenhumas: o programa está, informa o IHRU,“suspenso” para se efetuar “um balanço sobre os impactos de eficácia e eficiência do programa enquanto instrumento de política pública de habitação”, estando “os trabalhos de revisão do PAS” (sejam eles quais forem) em curso.No site da Estamo (a empresa estatal de gestão do património imobiliário público que no PAS foi encarregada de tratar da “angariação” e avaliação dos imóveis privados), na página referente ao PAS lê-se: “Exmos./as Senhores/as, Proprietários, Mediadores Imobiliários e Parceiros Institucionais, por motivos de natureza técnica não é possível, de momento, a submissão de novas candidaturas. Agradecemos a vossa compreensão.”.Governo recorre a mediadoras para angariar casas para o Programa Arrendar para Subarrendar. Filipe suspira. “Mal o programa abriu, em agosto de 2023, interessei-me. Os meus vizinhos naquele prédio estavam a arrendar apartamentos iguais ao meu por 900 ou 1000 euros, em arrendamentos curtos, porque as pessoas não se aguentavam. Como considero que esta onda imobiliária de preços doidos não faz sentido, achei o PAS positivo e fiz logo em setembro as primeiras perguntas à Estamo. No fim de janeiro de 2024 entreguei toda a documentação que pediam e em fevereiro entraram em contacto comigo: foi lá um senhor levar o contrato para eu assinar e buscar as chaves.”O seu apartamento, comprado há 20 anos e que, com o crescer da família, se tornara demasiado pequeno, foi arrendado ao IHRU por 900 euros, num contrato de cinco anos – é essa a duração mínima prevista no PAS, cujos contratos podem ir até 30 anos –, tendo o IHRU pagado um ano de rendas à cabeça: “Como havia essa hipótese, optei por ela.”Foram 10800 euros de uma vez, livres de impostos: um dos atrativos do PAS é isentar os proprietários de IRS ou IRC, desde que o valor da renda negociada com a Estamo não ultrapasse “os limites gerais do preço de renda, por tipologia e concelho de localização do imóvel”, estabelecidos em 2019 para o programa de Arrendamento Acessível – mais concretamente, valores 20% abaixo do valor da renda média indicada, com base nos contratos celebrados, para a tipologia e para a zona, pelo índice do Instituto Nacional de Estatística. No caso de Lisboa – a zona mais cara do país – e de um T1, o valor máximo tabelado para a “renda acessível” é precisamente 900 euros.Filipe ficou tão entusiasmado com o PAS que, confessa, andou a fazer proselitismo: “Falei no programa ao meu senhorio atual e ao meu sogro, que tem um apartamento em Moscavide. Convenci-o, mas quando em outubro fui ao site da Estamo para lhe candidatar a casa deparo-me com a informação de que não era possível, “devido a um problema técnico”. Liguei para lá e disseram-me que não sabiam muito bem o que se passava, só que o programa estava suspenso. Confesso que já tinha pensado que em mudando o governo deviam suspender logo que pudessem.”De facto, os motivos da suspensão não são de “natureza técnica”. Ao DN, a Estamo esclarece que a decisão de não permitir mais submissões de imóveis para o programa foi tomada a 19 de setembro de 2024 – ainda antes da anulação dos últimos sorteios e pouco depois de entrar em funções a nova direção do IHRU, nomeada pelo Governo Montenegro – e que se tratou de “uma suspensão nos procedimentos, até que esteja concluída pelo IHRU a avaliação do seu impacto no âmbito das diversas políticas de habitação”. Acrescendo que, informa a empresa pública, “estão esgotadas as verbas previstas” no contrato assinado com o IHRU, “pelo que um novo impulso estará dependente da referida reavaliação, aguardando a Estamo indicações a este propósito”.“Será que isto é só para ir buscar dinheiro e nunca se arrenda?”Luís Tibério, outro proprietário que, como Filipe Ribeiro, aderiu ao PAS, lamenta. “Acho que as políticas de um país têm de ser seguidas pelos dois blocos – mas o que sucede é sempre o mesmo: as coisas estão a funcionar num momento, o governo muda e deixam de funcionar.” Considerando o programa “excelente para inquilinos e senhorios, bem desenhado no sentido administrativo e jurídico e podendo resolver problemas”, quis, explica ao DN, aderir por duas ordens de razões: a da garantia – “Garante-me um contrato de cinco anos, com pagamento garantido de rendas e sem ter de pagar comissão a uma agência imobiliária para procurar e avaliar inquilinos”– e a ideológica: “A minha linha política é centro-esquerda social, acho que o mercado está louco. Até os valores do arrendamento acessível acho altos de mais, não deviam ser 20% abaixo do valor do mercado, deviam ser 50% abaixo.”.Estado propõe-se arrendar casas para subarrendar. Certo é que pelo seu T3 em Cascais negociou com a Estamo um valor de renda de 1200 euros – precisamente o valor máximo da já mencionada tabela para a tipologia e zona – e, como se constata no contrato celebrado com o IHRU, que enviou ao DN, paga 12 meses à cabeça (como no caso de Filipe Ribeiro): “É uma das vantagens do programa: no mercado tradicional, aberto, liberal, não posso pedir um ano de rendas.”Outro dos atrativos que menciona é, naturalmente, a isenção de imposto. Fala ainda da responsabilização do IHRU pela reparação de eventuais danos e substituição de equipamentos que se avariem, entregando o imóvel no estado em que o recebeu.Não fosse o tempo que o processo levou – “A candidatura foi submetida a 5 de julho de 2024, a Estamo tratou de tudo (mandaram visitar o apartamento para avaliar, tirar fotos, etc, negociaram a renda e o prazo) e em agosto passou-nos para o IHRU. E aí empancou. Houve até um momento em que me arrependi de me ter metido no programa, pela falta de resposta do IHRU; na Estamo já nem sabiam o que me dizer. Só no final de outubro é que foram lá a casa fazer o contrato” – e o PAS, na perspetiva de Luís Tibério, seria só vantagens. Até chegar ao momento em que percebeu que, cinco meses após o início do contrato – cuja data de início é 1 de outubro –, a casa está vazia. “O meu objetivo e da minha mulher não é receber o dinheiro e a casa ficar vaga. Será que isto é só para ir buscar dinheiro e nunca se arrenda?”“Nunca pensámos no PAS como uma forma de resolver os problemas da habitação”Admitindo que se chega à conclusão de que o programa foi um fiasco, que sucede a seguir? Terão de ser, supõe-se, sorteadas as 130 casas do concurso anulado, e as 98 restantes? E se algumas ficarem ainda assim vazias, o Estado vai continuar a pagá-las por cinco anos?O IHRU pode, esclarece Filipe Ribeiro, “denunciar os contratos com 120 dias de antecedência, tendo de cumprir pelo menos um terço dos mesmos”. Porém, no seu caso, não irá existir para já denúncia: acabou, comunica ao DN este domingo, de receber outro ano inteiro de rendas.“É uma pena o que se está a passar. Há dinheiro para gastar mas gastá-lo assim é um problema para o erário público”, comenta, com desalento, um técnico com conhecimento do processo do PAS, e que fala com o DN na condição de permanecer anónimo. “Este programa tinha um problema de base, uma incongruência: se os preços do mercado estão doidos, que sentido faz pôr o Estado a pagá-los? Obviamente que isso não contribui para ‘arrefecer’ o mercado. E o mais espantoso é que há casas públicas no programa, com rendas escandalosas [refere-se a 21 fogos da Segurança Social incluídos no PAS, cujo valor de renda, sem limite por imposição legal, foi fixado com base na avaliação mais alta - situação noticiada pelo DN].”Não, não parece um balanço positivo, o do PAS. A atual deputada do PS Marina Gonçalves, ministra da tutela aquando do lançamento do Mais Habitação, soa consciente disso. “O programa ainda não tinha feito um ano quando saímos do governo, não posso fazer uma avaliação aprofundada. E é preciso dizer que nunca pensámos no PAS como uma forma de resolver os problemas da habitação, mas como um programa de apoio, temporário, para, como o Porta 65 [que ajuda os inquilinos a pagar rendas contratadas no mercado “livre”], criar uma resposta mais imediata num momento de emergência. Aliás definimos como primeira baliza captar apenas 320 habitações. Já íamos em cerca de 200 quando saí. Tivemos bastante adesão dos proprietários, e a ideia era que a plataforma [informática] tivesse um maior automatismo, mas apareceram problemas técnicos. E, se não tínhamos a expectativa de que este instrumento chegasse a muita gente, houve ainda assim muito menos candidaturas do que se esperaria, devido, creio, à falta de conhecimento do programa.”Quanto à patente inoperância do IHRU, a socialista assume que lhe foram entregues muitas competências: “Sou muito cautelosa quando se fala do trabalho do instituto, porque de facto tem muitas coisas nas mãos.” Do PRR Habitação e programa 1º Direito (criado para dar casa a quem vive em condições indignas, como os sem-abrigo) aos vários programas de apoio ao arrendamento, passando pela gestão de bairros de habitação pública, é de facto uma monumental carga de trabalhos. Que leva o técnico ouvido pelo DN a garantir que “se trabalha ali de sol a sol, sete dias por semana, mas com os meios e pessoas existentes, sem qualquer reforço, não é simplesmente possível cumprir.”