“Para a Austrália, com um espaço marítimo que cobre 10% da superfície da Terra, os submarinos são vitais”
Foto: REINALDO RODRIGUES

“Para a Austrália, com um espaço marítimo que cobre 10% da superfície da Terra, os submarinos são vitais”

Antigo oficial das Forças Armadas Australianas e atual professor da Australian National University, John Blaxland esteve em Portugal para uma conferência no Instituto de Defesa Nacional.
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Qual é a reação da Austrália, tradicional aliada dos Estados Unidos, à abordagem de Donald Trump às relações internacionais?

O governo australiano está a tentar responder com calma e frieza a cada desafio que surge, e são muitos. O que está a acontecer na Europa gera incerteza sobre o que os Estados Unidos podem fazer na Ásia. E existe uma preocupação real sobre o que parece ser o plano dos Estados Unidos para pressionar a Europa para que assuma a responsabilidade pela sua própria política externa e de defesa sem tanto apoio americano. Num certo sentido, é uma mudança de uma perspetiva unipolar dos Estados Unidos, o país que é a maior potência, para uma perspetiva multipolar, em que reconhece outras potências, particularmente a Rússia e a China. Algumas pessoas chamam Ialta 2.0 a esta ideia de dividir o mundo.

Trump está a procurar algum tipo de rearranjo geopolítico com a Rússia e a China?

Sim. Por isso a pressão sobre a Europa. Estão a incitá-la a ficar irritada, a reagir, a rearmar-se, para que os Estados Unidos possam reorientar-se de forma a conter a China.

Se os Estados Unidos estão a olhar mais para a Ásia, isso significa que Trump vê a Austrália como um aliado essencial?

Sim. Mas só passaram dois meses desde que Trump assumiu o cargo. Recordo que George W. Bush, nos primeiros oito meses, estava focado na China. E depois aconteceu o 11 de Setembro. Assim, é difícil julgar como será uma presidência ao fim de poucos meses. Toda a gente está a precipitar-se a fazer julgamentos, e precisamos de reservar esse julgamento, porque há uma agenda para transformar as políticas internas e externas dos Estados Unidos por causa de um sentimento de frustração com o passado. E isso está a impulsionar uma mudança que é um reconhecimento dos limites do poder americano, também dos poderes da Rússia e da China, de que a Europa tem confiado demasiado nos Estados Unidos para fazer o trabalho pesado, e ainda um desejo de se reorientar para o Pacífico.

A Austrália gasta mais de 2% do PIB em Defesa. Isto significa que não há argumentos para Trump a criticar como faz com alguns países europeus?

Há algumas coisas a favor da Austrália. Uma delas é o que gastamos em Defesa. A outra é que os Estados Unidos têm um excedente comercial com a Austrália. Portanto, não estamos sujeitos ao mesmo tipo de críticas que o Canadá. E o maior investidor na Austrália são os Estados Unidos, e o investimento é uma medida de confiança a longo prazo. E depois há a relação de segurança e, claro, temos aquilo que um colega meu descrevia como “um interessante pedaço de real estate”. Fomos úteis na Segunda Guerra Mundial ao responder aos ataques do Japão. E hoje, em termos de perspetivas de ripostar contra a China, estamos tão bem posicionados quanto possível para os Estados Unidos, dadas as instalações de defesa conjuntas em Pine Gap, os fuzileiros em Darwin e a base naval em Perth. Perth foi a maior base submarina no Oceano Índico na Segunda Guerra Mundial. Albergou 170 submarinos aliados no pico das operações em 1943, quando holandeses, americanos e britânicos estavam a interditar o tráfego marítimo japonês, prejudicando a sua capacidade de operar no Sudeste Asiático, sobretudo nos estreitos, como o de Malaca. A relevância que esta geografia mantém é a razão pela qual a Austrália importa numa perspetiva transacional e hiper-realista. A Austrália tem uma utilidade duradoura para os interesses americanos.

A Austrália partilha com os Estados Unidos a visão da China como rival, para não dizer até como inimiga?

Bem, nós experimentámos já o lado mais afiado do poder da China. Sofremos o impacto da interferência deles. Desde a compra de políticos australianos a ataques cibernéticos. Há ameaças de sabotagem, há ameaças de coerção e de compra de influência e de chantagem para que as pessoas realizem atos consistentes com as preferências da China. Não se trata de a China invadir a Austrália. Trata-se de a China querer forçar a Austrália a cumprir os seus desejos. Nós prosperámos com ajuda do comércio com a China, mas, ao mesmo tempo, começámos a sentir a raiva chinesa por ousarmos dizer o que pensávamos, por exemplo, sobre a covid-19 ou o Tibete. A Austrália tem sido mais franca do que a maioria e, como resultado, tem recebido mais críticas. Tivemos 20 mil milhões de dólares em sanções impostas à Austrália. O presidente Xi Jinping pensou que poderia assim persuadir a Austrália a obedecer, mas na economia global há oferta e há procura, há mercados em alta e há mercados em baixa, há muitas variáveis. Se os chineses não quiserem comprar o nosso trigo ou o nosso vinho, alguém o comprará. A economia global não é algo que responda a uma ordem em Pequim, ao contrário da economia estatal na China.

Quad e AUKUS sendo diferentes são ambos são formas de a Austrália defender-se da China?

Sim. O Quad é um acordo interessante porque é entre quatro países bastante díspares. Mas três deles são aliados: o Japão tem uma aliança com os Estados Unidos. A Austrália tem uma aliança com os Estados Unidos. E a Austrália e o Japão têm agora relações muito mais próximas do que nunca. A Índia está numa categoria diferente porque faz parte do Movimento dos Países Não Alinhados desde a Declaração de Bandung na década de 1950. Tem sido simpática com a Rússia, pois depende dela para grande parte do seu equipamento militar e para parte considerável do comércio. Assim, tem sido mais tolerante com a Rússia do que os outros membros do Quad. Mas os indianos, tal como os outros membros do Quad, ficaram bastante incomodados com o aventureirismo da China, no caso deles pelas ações nos Himalaias, onde os chineses têm sido bastante beligerantes. Portanto, a Índia está a lutar para equilibrar a relação com a Rússia, a relação com a China, tentando reforçar a relação com os Estados Unidos, com a Austrália e com o Japão. E é evidente que a Índia está comprometida com os outros países do Quad, particularmente no Indo-Pacífico, ao envolver-se em algumas ações de equilíbrio de soft power para mitigar os efeitos das operações de influência chinesa. O AUKUS é muito diferente. É um acordo de partilha de tecnologia entre três países que são parceiros há muito tempo. A estreita colaboração entre australianos, britânicos e americanos remonta à Segunda Guerra Mundial. Foi em 1942 que confiámos intimamente uns nos outros. E temos feito isso durante os 80 anos desde então. Portanto, temos agora uma colaboração ultrassecreta que tem sido intergeracional entre estes três países. Isso não tem paralelo na história, em todo o mundo.

Independente de quem governa nos três países, incluindo a primeira Administração Trump?

Sim. Por todos os governos. É neste contexto que surge o acordo de partilha de tecnologia de propulsão nuclear submarina. Por isso, quando a ideia foi apresentada a Joe Biden, ele pensou: “sim, é uma boa ideia. Podemos confiar nos australianos”.

Estes submarinos são decisivos para a Austrália?

Para uma nação insular com um espaço marítimo que cobre 10% da superfície da Terra, os submarinos são vitais. E têm um efeito dissuasor significativo. Temos submarinos diesel-elétricos e têm sido bons. Mas agora estamos perante uma situação em que já não são adequados para um país como a Austrália. Não se pode ir de Perth para muitos lugares sem ter de se expor à deteção, pois têm de recarregar as baterias. Isto significa que ao longo de anos os satélites foram capazes de rastrear o padrão, e hoje, juntamente com a inteligência artificial, é possível identificar, selecionar e visar um submarino quando este recarrega as suas baterias. Essa é uma fraqueza fatal. A única forma de contornar isto é permanecer submersos. E a única forma de o fazer é com propulsão nuclear. É caro e arriscado, mas na verdade não temos um plano B, mesmo que haja problemas na capacidade de produção dos americanos. As pessoas dizem: “Ah, devíamos voltar para os franceses”. A sério? Não funcionou muito bem da última vez. Além disso, já investimos consideravelmente neste caminho. O sistema americano pode ainda falhar, e não aumentar a sua produção de submarinos com a rapidez suficiente para lhes dar confiança para os partilhar connosco. Mesmo que seja esse o caso, que é o pior cenário e alimenta algum debate político interno, já estamos a começar a juntar tripulações em alguns submarinos americanos. Portanto, há australianos em submarinos dos Estados Unidos. E já estamos a ver a rotação destes submarinos da classe Virginia por Perth. Gera um efeito dissuasor.

Há um debate nascente na Europa sobre o nuclear. A Austrália também analisa a possibilidade de adotar uma estratégia nuclear?

Sim. Bem, já tivemos isso antes. Nós, na década de 1950, estávamos a ajudar os britânicos com os seus testes para desenvolverem uma capacidade nuclear britânica independente. Maralinga, Montebello. Fizemos vários testes nucleares na Austrália. Após a Crise do Suez de 1956, quando as asas da Grã-Bretanha foram realmente cortadas pelo presidente Eisenhower, parte da aproximação entre os Estados Unidos e a Grã-Bretanha foi um acordo em que os britânicos receberiam tecnologia nuclear. E isso significava que a Austrália já não estaria envolvida no acordo, mas ficaria sob o guarda-chuva nuclear americano. Continuámos com a ideia da energia nuclear civil até ao início da década de 1970. Mas interrompemos isso em parte porque a Austrália tem um fornecimento abundante de petróleo, gás, carvão. Não há uma necessidade real de recorrer à energia nuclear. Mas isso está a mudar um pouco agora, porque o principal partido da oposição propõe construir sete centrais nucleares.

Olhando de novo para a China, é uma séria ameaça?

Sim, mas não é uma ameaça de invasão. As pessoas pensam: “Bem, se não é invasão, com o que é que estás preocupado, John?” Não é assim tão evidente, a não ser que se comece a recuar e a agregar. É a interferência na política. São os ataques cibernéticos. E acabamos de ver a circum-navegação da Austrália por uma flotilha chinesa com um navio de mais poderoso do que qualquer um dos navios australianos.

A China procura também influenciar a comunidade de origem chinesa na Austrália?

Há uma influência da China nos meios de comunicação etnicamente chineses na Austrália. Portanto, há um problema real e também um desejo real do governo australiano de reagir e ajudar os meios de comunicação social para que estejam menos sujeitos à coerção da China e permitam um debate livre e aberto como em qualquer democracia, independentemente da etnia. Mas isso é interessante, é um pouco como um jogo político, porque a China joga um pouco connosco. Começa a fazer ameaças com acusações de racismo quando a Austrália se atreve a desafiar a China sobre o seu envolvimento em assuntos internos. E os australianos não querem ser retratados como racistas. Não podemos esquecer que abandonámos a política da Austrália branca há mais de 50 anos. E tornámo-nos um país bastante bem sucedido, multicultural e cosmopolita desde então. E estamos muito orgulhosos disso. Por isso, quando um país como a China nos acusa de usar a cartada racial, é bastante ofensivo.

Teme um conflito aberto?

Não queremos guerra. Queremos uma relação respeitosa, mutuamente respeitadora, colaborativa e construtiva, onde ninguém tente intimidar ninguém. Precisamos de continuar a negociar. Mas a China não negoceia connosco por gostar da nossa democracia. Só o faz porque é um bom negócio. O minério de ferro da Austrália é o melhor do mundo. O nosso carvão é de primeira qualidade. O nosso GNL tem grande valor. Essas são as únicas razões pelas quais nos compram. Se encontrarem um negócio melhor noutro lugar, irão embora. Mas boa sorte. Assim, quando os australianos pensam em envolvimento com a China, isso é transacional.

E quanto aos Estados Unidos? É uma relação transacional ou é mais do que isso?

O relacionamento da Austrália com os Estados Unidos tem sido muito mais do que isso. São duas democracias de mercado livre, de língua inglesa, federais, cosmopolitas, do novo mundo, de dimensão continental. Consegue nomear algum outro país assim no mundo? Só há mais um. É o Canadá.

Para finalizar: como vê a cooperação entre Austrália e Portugal para ajudar Timor-Leste a desenvolver-se como uma nação independente?

Austrália e Portugal compartilham um interesse em ajudar que Timor-Leste continue a desenvolver-se, a integrar-se na associação regional, a ASEAN, e a continuar a ser um bom cidadão internacional. Os dois países importam-se com o futuro de Timor-Leste. A Austrália está mesmo ao lado. Ela sente uma dívida de obrigação pela ajuda fornecida aos soldados australianos pelo povo timorense que remonta à Segunda Guerra Mundial. A Austrália sempre estará preocupada. Portugal está longe e a sua preocupação e interesse têm diminuído e fluído ao longo dos anos. Devemos garantir que a sobreposição dos nossos interesses seja canalizada para garantir que o que fazemos seja complementar, não competitivo, em Timor-Leste.

Timor-Leste também é afetado pela procura de influência da China?

Sim, de facto. A China está interessada em Timor-Leste, assim como está interessada em todos os países da vizinhança.

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