Montenegro com todos os seus ministros quando anunciou no sábado a intenção de avançar com uma moção de confiança.
Montenegro com todos os seus ministros quando anunciou no sábado a intenção de avançar com uma moção de confiança.Foto: Gerardo Santos

Governo não cumpriu obrigação legal de publicação de registo de interesses

Montenegro anunciou como prioridade do seu governo o reforçar das regras de transparência e do controlo de conflitos de interesses. Mas o Executivo nem sequer publicou registo de interesses dos seus membros, como a lei determina. Questionado pelo DN, não esclarece porquê.
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A lei que rege “o Exercício de Funções por Titulares de Cargos Políticos e Altos Cargos Públicos”– e que obriga a que os governantes estejam em exclusividade, obrigação que, de acordo com a opinião de constitucionalistas como Jorge Reis Novais, Vital Moreira e Paulo Otero, Luís Montenegro terá violado devido à empresa familiar Spinumviva – impõe, no seu artigo 15º, que as declarações de registos de interesses dos membros do Governo têm de ser públicas, e acessíveis na Internet.  

“A Assembleia da República e o Governo publicam obrigatoriamente nos respetivos sítios da Internet os elementos da declaração única relativos ao registo de interesses dos respetivos titulares”, lê-se no referido artigo desta lei de 2019.

Porém, os registos de interesses dos membros do Governo não estão publicados nem no “sítio da Internet” do próprio nem no do parlamento (na página referente aos registos de interesses dos Governos). O DN não os conseguiu encontrar, e pedindo ajuda ao Governo para tal, não a obteve – nem resposta sequer.

Susana Coroado, investigadora na Dublin City University, consultora internacional para várias organizações não-governamentais e investigadora correspondente da Comissão Europeia no domínio da corrupção e da boa governança, já se tinha dado conta do facto. “Em primeiro lugar, o Governo está em incumprimento da lei”, diz ao DN. “Em segundo lugar, as declarações de interesses dos membros do Governo dariam muita informação útil para se avaliar se há ou não conflitos de interesses, por exemplo no caso do primeiro-ministro. Porque o primeiro-ministro diz que declarou todos os interesses que tem mas nós, cidadãos, não sabemos disso porque não temos acesso ou temos acesso muito restrito por causa das regras de sigilo impostas pela Entidade para a Transparência”.

Acresce, nota a cientista, que não se sabe quais são as exigências da Entidade no que respeita ao registo de interesses – se, nomeadamente, os clientes que Luís Montenegro teve antes de ser primeiro-ministro, pessoalmente ou através da empresa Spinumviva (que criou em 2021, em nome dele, da mulher e dos filhos, e que está no centro da crise política que deverá levar ao derrube do Executivo por via da não aprovação da moção que confiança que o primeiro-ministro anunciou esta quarta-feira), têm de constar desse registo ou não.

Uma dúvida tanto mais relevante quando Luís Montenegro anunciou ter requerido à Entidade para a Transparência que efetue uma auditoria ao seu registo de interesses.

Ora, atendendo aos formulários de declarações de interesses dos membros do último Governo Costa, constantes no site do parlamento, os membros do Governo Montenegro, incluindo o próprio, terão tido de identificar “toda e qualquer atividade pública ou privada” que exerçam, ou tenham exercido nos últimos três anos, e, quanto a serviços prestados durante o mesmo período, as entidades a quem os prestaram. O que deverá implicar que o primeiro-ministro teve de identificar os seus clientes e da Spinumviva.

Participação de cônjuge em sociedade faz parte de registo de interesses

De facto, nas notas dos ditos formulários explica-se que é necessário identificar “atividades comerciais ou empresariais, de profissão liberal e o desempenho de funções eletivas ou de nomeação”, assim como cargos sociais que os membros de governos tenham exercido nos últimos três anos, “designadamente a descriminação dos cargos de administrador, gerente, gestor, diretor, membro de comissão administrativa, conselho fiscal e comissão de fiscalização, membro de mesa de mesa de assembleia geral ou de órgãos ou cargos análogos, de quaisquer sociedades comerciais, civis sob forma comercial, cooperativas ou públicas e também de associações, fundações, instituições particulares de solidariedade social, misericórdias e semelhantes, tanto nacionais como estrangeiras”.

E, o que mais interessa para o caso de Luís Montenegro, também os “serviços prestados” – ou seja, a quem governantes prestaram serviços nos três anos anteriores à assunção do cargo.

Estando, explica-se nos formulários consultados pelo DN, “abrangidas as entidades, e respetiva área de atividade, a quem o/a declarante preste pessoalmente serviços remunerados de qualquer natureza com caráter de permanência ou mesmo pontualmente desde que suscetíveis de gerarem conflitos de interesses. Quando tais serviços sejam prestados no exercício de atividades sujeitas a sigilo profissional, o/a declarante obterá o consentimento da entidade a quem esse serviço é prestado para a identificar”.

Tal significa, como já referido, que Luís Montenegro terá tido de identificar, no registo de interesses, as empresas às quais prestou serviços, quer diretamente quer através da empresa familiar Spinumviva.  A não ser que  tenha considerado que não se tratava de situações “suscetíveis de gerar conflitos de interesses”– voltaremos a este ponto.

Igualmente relevante para o caso que, tudo leva a crer, vai causar o derrube do Governo e novas eleições, é a rubrica “sociedades”, constante nos referidos formulários, e que implica a “identificação das sociedades em cujo capital o/a declarante por si, pelo cônjuge ou unido de facto, disponha de capital e também a quantificação dessa participação”. Parecendo assim ficar claro que para o efeito do registo de interesses a participação de um cônjuge ou unido de facto numa sociedade é considerada uma participação do governante.

Existe ainda a rubrica “outras situações”, que é assim explicada nas notas: “Sendo a Lei não taxativa na enumeração das situações a registar, desta rubrica devem constar quaisquer outras que não se integrem nas anteriores”.

Até o registo de interesses de Luís Montenegro ser, como imposto pela lei, tornado público, não é possível saber se, como garantiu, pôs lá tudo, nada escondendo, ou se ali faltam informações relevantes. É que nem no meio do turbilhão das  últimas duas semanas o Executivo se aprestou a sanar o seu incumprimento da lei. Aliás, ante as perguntas do DN sobre a mesmo, optou por não responder.

O jornal começou por enviar as perguntas, na tarde desta quarta-feira, à assessoria de imprensa  do primeiro-ministro, que no dia seguinte remeteu para o gabinete do ministro adjunto e da Presidência do Conselho de Ministros, António Leitão Amaro. O DN redirecionou então o pedido, mas até ao fecho deste texto não houve resposta.

Montenegro prometeu “reforçar transparência”

A ausência de transparência, consubstanciada quer na não resposta ao jornal (e aos jornalistas em geral) quer na não observância, pelo Executivo, da obrigação legal de publicação dos registos de interesses, choca frontalmente com o disposto no respetivo programa.

Assim como com o discurso de tomada de posse, a 2 de abril de 2024, de Luís Montenegro, no qual, apresentando o “combate à corrupção” como uma das suas prioridades, o primeiro-ministro assegurou que o seu governo promoveria “uma governação séria” e “transparente”.

Já no programa de governo, além de se assegurar que “a falta de transparência e a corrupção têm custos elevados para a economia, para a coesão social, para a credibilidade internacional do País e para o regular funcionamento das instituições democráticas”, e de se evidenciar aflição  com o lugar do país no índice da Transparência Internacional, prometem-se medidas para “reforçar as regras de transparência, controlo dos conflitos de interesses, incompatibilidades e de impedimentos dos titulares de cargos políticos e de altos cargos públicos”.

Porém, como o DN noticiou, o Governo levou quase um ano a aprovar o plano de prevenção de riscos de corrupção que, diz uma recomendação do Mecanismo Nacional Anticorrupção (MENAC) de 1 de fevereiro de 2024, deveria ter aprovado no prazo de 60 dias após o início de funções. Um plano que, ainda de acordo com a recomendação referida, deveria ter sido publicado no prazo de 10 dias a contar da sua aprovação e ser “objeto de avaliação anual”.

Tendo anunciado, a 13 de fevereiro último, no comunicado do Conselho de Ministros desse dia, que aprovara um “Plano de Prevenção de Riscos do Governo”, o Executivo ainda não o tornou público. Nem tão-pouco o disponibilizou ao DN quando, a 2 de março, o jornal o requereu ao gabinete do ministro adjunto e da Presidência do Conselho de Ministros.
A recusa foi assim justificada: “O Plano de Prevenção de Riscos foi aprovado em Conselho de Ministros sob a forma de Resolução, que é publicada em Diário da República, nos termos da lei. É esse o meio legal e idóneo para publicitação”.

Assim, a recomendação do MENAC foi desrespeitada; nem o Governo aprovou o plano em causa nos 60 dias após a tomada de posse nem o publicou no prazo de 10 dias seguintes à aprovação. De resto, o Executivo também não cumpriu o prazo de 180 dias a que se obrigou, no Código de Conduta próprio que aprovou em abril de 2024, para a publicação do plano em causa.

PM pediu parecer  sobre conflitos de interesse?

No dito Código de Conduta, o Governo anunciara, no artigo 11º, que iria, “no prazo de 180 dias”, adotar “um plano de prevenção de riscos, abrangendo a respetiva organização e atividade, incluindo áreas de administração ou de suporte, contendo mecanismos que permitam reduzir os riscos de ocorrência de conflitos de interesse e que promova a transparência relativamente aos membros do Governo e aos membros dos gabinetes”.

Seria naturalmente muito interessante conhecer este plano e que mecanismos prevê para promover a transparência e a prevenção de riscos da ocorrência de conflitos de interesse.

Como seria proveitoso perceber como é que o Governo aplicou, no seu tempo de existência, o Código de Conduta que aprovou. O qual prevê, face à “eventual existência de conflitos de interesses”, que seja requerido parecer “aos serviços competentes”. Assim como que “qualquer membro do Governo que se encontre perante um conflito de interesses, atual ou potencial, deve tomar imediatamente as medidas necessárias para evitar, sanar ou fazer cessar o conflito em causa, em conformidade com as disposições do presente Código de Conduta e da lei”.

Não é sabido se o primeiro-ministro considerou, antes de se tornar público, através de uma notícia do Expresso, que a empresa que fundou em 2021 com a mulher e filhos recebia até agora avenças de várias empresas (incluindo uma empresa de casinos, a Solverde, que depende de concessão estatal) , estar numa situação de potencial conflito de interesses – ou de potencial violação da obrigação de exclusividade.

Para tentar perceber se foi o caso, o DN enviou ao gabinete do ministro Leitão Amaro um questionário no qual solicita esclarecimento sobre a identidade dos “serviços competentes” para efetuar os pareceres no caso de potenciais conflitos de interesses, assim como sobre o número de pedidos de parecer relativos a membros do governo requeridos desde a aprovação do Código e a identidade dos membros do governo a que respeitaram.

O DN quis igualmente saber quantos pedidos de escusa, devido a conflitos de interesses percepcionados ou assumidos, ocorreram no governo desde que está em funções, e por parte de quem. E se o Governo considera que os pedidos de escusa de membros do governo devem ser, como sucede por exemplo em França, publicados em Diário da República, ou de qualquer outra forma.

Nenhuma destas questões foi respondida. 

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