A voz é tonitruante e a sua presença reclama a amplidão do palco, mas, na intimidade da oficina literária, estuda, lê incessantemente, procura a palavra justa. António Carlos Cortez, poeta, professor e crítico literário, é um “objeto” não identificado na paisagem literária portuguesa, marcada há muito por coreografias tão calculistas como previsíveis, em que cada dançarino mede muito bem o alcance do passo que há-de dar a seguir, e em que companhia o fará. Dir-se-ia que se está nas tintas para o que sobre ele possam murmurar, mas a verdade é que controla de forma muito ativa a sua imagem pública. Multiplica-se em eventos, em artigos para a imprensa (como aqui, no DN), em posts nas redes sociais que, não raro, escreve integralmente em maiúsculas. Entrevistamo-lo a propósito dos seus 25 anos de carreira, assinalada com o livro de poesia, Condor (edição Caminho), em que homenageia explicitamente alguns dos seus mestres assumidos, como Gastão Cruz, Fiama Hasse Pais Brandão, Mário Cesariny de Vasconcelos, Nuno Júdice ou Ruy Belo. Embora prefira este género literário, tem também vasta produção em conto, romance e ensaio, em que pontificam títulos como Um Dia Lusíada (romance), Cenas Portuguesas (contos), Crítica Crónica. Sobre Cultura, Educação e Política ou O Fim da Educação. Neste quarto de século de escrita, Cortez conquistou vários prémios literários como o Teixeira de Pascoaes, da Associação Portuguesa de Escritores, e o Ruy Belo, da Câmara Municipal de Sintra.A publicação do seu livro mais recente, Condor marca também os seus 25 anos de poesia. O que o torna diferente das obras anteriores?Ao fim de 25 anos de poesia tenho a noção de que cheguei a um ponto de não regresso, no sentido em que, neste livro, se sublinha algo que o Pedro Mexia escreveu, há 20 anos, precisamente no DN: A minha inscrição numa terceira via da poesia portuguesa. E Condor é, de facto, um reposicionamento da minha poesia perante aquilo que fiz nos últimos 25 anos e perante os meus contemporâneos. É um livro muito pensado, muito trabalhado, como, aliás, todos os meus livros, mas o que o diferencia é talvez um certo sabor antigo: Há aqui versos em que trabalho muito à maneira de Camões ou de Sá de Miranda, por um lado, porque gosto daquele jogo sonoro, por outro, porque são poetas que venero. Mas não o faço de uma forma literal. A poesia não se compadece com banalidades na concepção da escrita.Trabalha muito a linguagem?Habitualmente, sim, e este Condor exigiu-me um esforço suplementar. Muitas vezes, as pessoas não têm noção do que é o laboratório da escrita poética e do que ela nos exige. Não falo só por mim. Há poetas do poema longo que eu admiro muito, que são da nossa geração, como Rui Cóias e José Ricardo Nunes. Há inventores verbais também muito importantes e é preciso seguir o trabalho de editores independentes como o Emanuel Caneira. No meu caso, um dos meus grandes mestres é o mexicano Octavio Paz, Nobel da Literatura 1991, de quem estou a traduzir um livro há algum tempo. Tem um entendimento da poesia de que não abdicou em circunstância alguma. Voltando a Condor, eu diria que é também a minha homenagem à literatura portuguesa e a autores que muito prezo. Este poemas longos bebem na tradição do Ruy Belo, do Herberto Hélder, do Gastão Cruz, que, na sua fase final, também se dedicou a esta forma. No fundo, diria que pertenço a uma linha que investe na imaginação e no trabalho laboratorial. Para mim, o poema deve levar ao leitor um potencial enigmático, que pode ser transformador.Transformador, em que medida?Quando lemos poemas de Sophia de Mello Breyner Andersen, de Holderlin, de Santa Teresa de Ávila, entre tantos outros, é possível que nos deixemos exaltar ou inquietar, que não fiquemos iguais ao que éramos antes da leitura do poema. Ao longo da História da poesia, desde tempos imemoriais, os temas são sempre os mesmos (o amor, a morte, o medo…) porque as questões chave que se colocam à Humanidade são inalteráveis. A invenção poética existe quando o poeta ativa a capacidade imaginativa. No meu caso, Condor é uma resposta a Diamante, o meu anterior livro de poesia publicado há quatro anos, que abre com uma sequência de 18 sonetos e tem ainda uma segunda secção com poemas em prosa, que é uma coisa que gosto muito de fazer. Mas também responde àquilo que eu fiz há 25 anos e ao que procuro fazer sempre: Tentar não cair em “lugares” já conhecidos. Procuro sempre explorar novas formas, a não ser o soneto e o poema em prosa, a que regresso sempre..CondorAntónio Carlos CortezEditorial Caminho96 páginas.Diz-se frequentemente que somos um país de poetas, mas a verdade é que os números mostram que só há um género literário que vende pior do que a poesia, que é o Teatro. De facto, gabamo-nos de ser um país de poetas, mas em que poucas pessoas leem poesia. Eu não me posso queixar, tenho encontrado leitores em número cada vez maior, mas estou muito ciente de que as novas gerações conseguem publicar poesia com muito poucas leituras. Ou nenhumas. Entram num circuito de redes sociais, auto-publicam-se em editoras que fazem disso negócio, sem qualquer critério editorial ou exigência.A sua bibliografia, que é vasta, também inclui romance e conto, com livros bem recentes como Um Dia Lusíada ou Cenas Portuguesas. Porquê estas incursões noutros registos?Posso dizer que, na verdade, nunca pensei escrever ficção. Mas um acontecimento de ordem pessoal, em 2018, levou-me a pensar num romance sobre um tema que me interessa muitíssimo, que é a guerra colonial, tal como a guerra do Vietname. Aliás, o tema da guerra interessa-me muito. Falando com o Carlos Matos Gomes, este chamou-me a atenção para o facto da não haver na minha geração (nasci em 1976) um livro sobre a Guerra Colonial. E eu fiquei a pensar nisso, li muito sobre o tema (já lia antes, de resto) e escrevi o romance O Dia Lusíada. Desenvolvi uma personagem que é uma espécie de anti-herói, Elias Moura de seu nome, que participa na famosa operação Nó Górdio, a mais dispendiosa de toda a guerra colonial, chefiada pelo Kaulza de Arriaga, em que estiveram envolvidos mais de 6 mil homens. Como se sabe, foi um desastre. Imaginei o meu Elias Moura como um professor de Literatura nos subúrbios de Lisboa, que leu Camões, António Nobre e Teixeira de Pascoaes, e que, ao longo da sua comissão em África, escreve para tentar sobreviver. O livro está dividido em seis cantos, à maneira de uma epopeia.E os contos, Cenas Portuguesas?Surge na sequência do romance. Está cheio de personagens colhidas no nosso quotidiano, com os nossos pequenos poderes, os fascismos, a hipocrisia, personagens como o Sr. Rato, taxista, ex-pide e homossexual reprimido. Há uma dimensão satírica que não está presente na minha poesia. Participa em muitas sessões públicas em bibliotecas ou livrarias, a que acorre muita gente, seja o tema a Educação (sobre o qual também escreve), seja Literatura. Acha que essa adesão se deve ao tom assertivo e desassombrado com que fala, e que, valha a verdade, não é muito habitual entre nós? Esse tom assertivo é-me natural, talvez porque tenho sangue espanhol, como evidencia o apelido Cortez. Acho francamente que as pessoas estão cansadas dos rodriguinhos e de punhos de renda. O Mário Soares disse certa vez que os portugueses tinham direito à indignação, mas essa indignação tem de ter consequências. Eu não tenho medo, num país que continua perfilado de medo, que se calhar nunca perdeu, a que se soma agora a brutalidade. As minhas sessões têm muita gente porque, creio, os meus livros são lidos, mas também porque as pessoas precisam que lhes digam essas coisas. Eu tenho 49 anos e não quero acreditar que a nossa geração está tão burguesmente instalada que não perceba que já basta. Politica e culturalmente, falamos muito de Democracia e de elevador social, que parou, mas não levamos até ao fim a nossa ação cívica. O escritor, o poeta, tem uma responsabilidade cívica acrescida?Acredito firmemente que quem escreve tem a responsabilidade de denunciar a hipocrisia, a incompetência e a estupidez. Essa é também a lição que Camões nos deixa, quando anuncia, em Os Lusíadas, quem são os tipos que não vai cantar. E também quando fala da inveja lusitana, que tanto mina as nossas relações. Dou muitos cursos em pós-graduações, em bibliotecas, gosto muito de falar poesia do século XVI e XVII, e as pessoas constatam que me mantenho fiel a um programa de poesia. Não me ouvirão dizer que tenho um entendimento da poesia às segundas e quartas-feiras e outro às terças e quintas. Sou coerente nisso, como sou ao denunciar os perigos de uma sociedade desprovida de qualquer curiosidade intelectual, mesmo ao mais alto nível. No nosso Parlamento não temos um deputado que saiba de poesia e é pena. Temos um primeiro-ministro que confunde Saramago com Sophia e um líder de extrema-direita que se comporta como um suburbano raivoso. Mas os políticos não estão sozinhos nesta atitude. Em 2023, fiquei muito esclarecido quando, a propósito de uma importante manifestação de professores, a FENPROF pediu às pessoas da Cultura que se juntassem a nós. Ninguém apareceu.Continua a escrever crítica literária?Continuo. Escrevi para o JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias desde 2003 até agora, até à sua anunciada suspensão. Há um lado simbólico do jornalismo cultural digno desse nome, que me é muito cara. Infelizmente, a crítica literária mantém-se bem viva em Espanha ou nos países latino-americanos, mesmo no Brasil, mas em Portugal estamos a matá-la.Tivemo-la mesmo durante o Estado Novo, em que era um espaço de alguma liberdade de ideias…Sem dúvida, tivemo-la sensivelmente até à década de 1980. Depois, entrámos nesta deriva neo-liberal…Como poeta, o que é que o exercício da crítica lhe acrescentou?Obrigou-me a ter uma disciplina de leituras. Mas, sobretudo, ajudou-me muito a perceber o que não fazer.E o que não se deve fazer?Não se deve tornar a poesia demasiado prosaica, no sentido em que lhe retiremos qualquer sentido imagético e metafórico e, sobretudo, não cair na tentação de fazer discurso pseudo-realista demasiado ancorado em acontecimentos banais.