Adolescência, Loures e “coisas de rapazes”
Ponto prévio: não acho que a série Adolescência seja sobretudo sobre machismo e sobre ódio às mulheres, e não acho que encerre respostas ou sequer explicações: é sobretudo magnífica porque não o faz, e nos deixa com a mesma perplexidade magoada, horrorizada, que Elephant, o filme de 2003 de Gus Van Sant sobre o já tão longínquo massacre de Columbine (1999).
Também não creio que “as redes sociais” sejam o principal fator (e fautor) em situações como a retratada na série ou naquilo que, segundo o noticiado, é o caso de Loures (a alegada violação de uma jovem de 16 anos por um grupo de jovens, com difusão de imagens do crime). Serão sobretudo um acelerador (no sentido químico, de aumentar a velocidade de uma reação) e um meio para -- quando em causa está, como aparentemente no caso de Loures, o crime de divulgação de imagens sem consentimento.
O potencial danoso das redes sociais, nomeadamente no que respeita à “socialização” para a violência de género e a dominação masculina (através do discurso e exemplo de influencers como Andrew Tate, referido em Adolescência, que se assume misógino e é acusado de crimes sexuais, tráfico e exploração sexual de mulheres), não pode ser separado da ausência de uma verdadeira educação para a igualdade e contra a violência sobre as mulheres. Da ausência de um combate eficaz, estruturado e determinado ao machismo -- um combate que é muito mais que proclamações periódicas, em “dias internacionais”, e ocasionais comoções nacionais e internacionais com “casos”.
E é preciso também perceber que o facto de, de repente, haver tanta gente a falar de “machismo tóxico” e de misoginia não significa que se trata de um fenómeno novo, ou que, sequer, esse fenómeno esteja a adquirir uma maior virulência.
Que o aumento de denúncias de crimes sexuais e de violência de género por parte de mulheres e raparigas, visível nas estatísticas portuguesas como nas europeias, não implica necessariamente que haja no presente uma maior incidência desses crimes que no passado. Desde logo, porque poucas tipologias criminais mudaram mais nas últimas décadas que as relativas à violência de género e à violência sexual -- basta lembrar que até 2007, quando foi criado o crime de importunação sexual, não havia previsão no Código Penal para os tão corriqueiros “toques” e “apalpões”, tendo-se até verificado uma forte resistência na magistratura face ao novo tipo criminal (com a Associação Sindical de Juízes a considerá-lo “excessivo”); que foi preciso esperar por 2015, e mais uma vez contra a opinião de muita gente, para que os dichotes sexuais “de rua” passassem a incluir-se no mesmo crime.
Naturalmente, aumentaram as denúncias de crimes que há 20 ou 10 anos não existiam sequer; passaram a ser punidas ações que antes, como se lê num acórdão de 2024 do Tribunal da Relação de Lisboa, o qual confirma uma condenação por importunação sexual, seriam “toleradas e desvalorizadas”. Essa desvalorização, que mais não era que a normalização da violência sexual e de género (encarada como “uma inevitabilidade” ou, como diz uma testemunha citada no acórdão, “coisas de rapazes”) explica que no último inquérito sobre violência de género realizado na União Europeia, em 2021, 35% das mulheres mais jovens (dos 18 aos 29) reportem tê-la sofrido, contra 24% das mais velhas (dos 65 aos 74).
A própria definição do que é violência sexual difere (generalizando, claro) para uma jovem de 18 anos e para uma mulher de 70. Como difere em função da cultura e da sociedade: no inquérito referido, os países nos quais as mulheres mais reportaram terem sido vítimas de “atos sexuais degradantes ou humilhantes” perpetrados por “não-parceiros” são a Finlândia e a Suécia, com a Polónia no outro extremo.
O mais provável é que se se perguntar a uma septuagenária portuguesa se foi vítima de violência sexual ela não inclua sequer nessa categoria as vezes que foi alvo daquilo a que se convencionou chamar “piropos” e que - -citando o acórdão referido -- inclui abordagens como “dava-te uma grande foda”, muitas vezes dirigidas a menores; que nem os “encostos” nos transportes públicos lhe ocorra contabilizar.
E muito menos a mulher de 70, como muitas mais novas, se lembrará de qualificar como violência sexual algo que ocorria em todas as escolas quando eu era criança e, descobri ouvindo as filhas das minhas amigas, continuava a ocorrer décadas depois: os “ataques” concertados dos rapazes às raparigas, levantando-lhes as saias, apalpando-as, forçando-as a contactos físicos.
“Coisas de rapazes”, como dizia a testemunha citada pela Relação, que foram sempre olhadas como algo de “natural”, “sem mal”, por mais que as raparigas o sentissem como violência. Por mais que chorassem, que fugissem, que lutassem -- as poucas que não aceitavam o conselho “não reajas porque é pior”.
Aculturados para a violência sobre as mulheres desde crianças, como as mulheres foram desde crianças aculturadas a sofrê-la em silêncio e sem retaliar, definidos como dominantes e como brutos como elas foram como submissas e doces, os rapazes que fazem coisas como as que, dizem-nos, fizeram os do caso de Loures, não estão a fazer nada de novo.
A misoginia e o machismo tóxico não nasceram agora, no século XXI e nas redes sociais; estão cheios deles a literatura, as coletâneas de jurisprudência, os códigos penais e civis. Estão cheios deles as famílias nas quais ainda se espera que sejam as meninas a “ajudar” a mãe -- que é, ainda, na maioria das casas e casais heterossexuais, e por mais que trabalhe fora, quem se ocupa das chamadas “tarefas domésticas”. Estão cheios deles a música pop e o rap (ui, esse então) e o humor dos humoristas. Estão cheios deles as prédicas religiosas e os programas dos partidos e governos que escolhem a disciplina de Cidadania e a igualdade de género como alvos preferenciais (para depois se afligirem muito com a violência doméstica e as mulheres mortas, claro).
O machismo tóxico, repelente, que vemos no vídeo em que um rapaz, alegado arguido no caso de Loures, descreve entre risos, enquanto outro rapaz ouve a rir, o sexo entre um grupo de amigos e uma rapariga que “teve de ir ao hospital”, e “não conseguia andar”, não nasceu por geração espontânea, não veio do Instagram, nem do Tik-Tok, veio mesmo desse caldo cultural de violência normalizada sobre as mulheres em que vivemos -- ainda. O machismo “normal” que faria deste vídeo apenas mais um “vídeo engraçado”, mais uma “coisa de rapazes”, se não suspeitássemos que ali se está a falar de um crime muito real, e de uma rapariga de 16 anos.
Uma rapariga que está, imagine-se, a assistir a tudo isto; uma rapariga a quem o juiz de instrução, ao decidir as medidas de coação a impor aos arguidos, não soube (ou não quis?), incrivelmente, proteger das investidas destes nas redes sociais. Achou o magistrado porventura "excessivo" coarctar-lhes a liberdade de expressão e o acesso àquilo que pode ter sido uma arma de crime e que, ainda para mais, é, de acordo com o que informou a Polícia Judiciária, um meio de ganharem dinheiro. Porque, é sabido, o silenciamento é para as vítimas, como a inexistência: coisas de mulheres.
A não ser que, como exortou este sábado uma das manifestantes na concentração "Violação não se filma, condena-se", aprendamos a não ter medo da nossa raiva.