Carlos Martins: "Não se pode classificar o Estado Novo como fascista"

O que é o fascismo, como nasceu e como se propagou na Europa após a Primeira Guerra Mundial? Livro do investigador Carlos Martins traça um retrato detalhado dos Fascismos para além de Hitler e Mussolini e deixa um aviso: "O fenómeno ainda hoje sobrevive".
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"Todo o fascismo é condenável, mas nem tudo o que é condenável é fascismo".

A frase traduz a conceção de que, apesar do uso amplo em significados, nem tudo o que parece é fascismo, nem tão pouco o fascismo é "um mero sinónimo de ditadura ou tendências ditatoriais" apesar de na "linguagem quotidiana", no "confronto político e no ativismo social" a palavra ter esse uso indiscriminado "como forma de condenação moral".

O "fenómeno político (...) de características únicas (...), apesar das semelhanças", é distinto, explica Carlos Martins, doutorado em Política Comparada pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, de "outras ideologias antidemocráticas habitualmente colocadas no extremo direito do espetro político".

Para que se possa "compreender as especificidades de um fenómeno", explica o investigador e autor do livro Fascismos para além de Hitler e Mussolini, que "marcou uma época da história recente e que ainda hoje sobrevive, é necessário que se use o conceito de forma rigorosa e precisa".

Esse focar permite ter uma ideia "clara dos perigos concretos que o fascismo representa", em particular numa altura em que "novos atores políticos [a direita radical populista, por exemplo], com propostas questionáveis", se procuram legitimar dizendo-se "distintos do fascismo histórico".

Nem tão pouco, alerta o investigador, "conceder-lhes legitimidade" pelo facto de, por exemplo, quer no caso de Franco, quer de Salazar, "nenhum dos partidos ou regimes em questão" dever ser "incluído no universo do fascismo".

"Não se pode classificar o Estado Novo como fascista. Não se tratava daquele projeto radical, que se dizia revolucionário, de criar um mundo novo, com ativismo, com métodos violentos de rua, o culto da força, com a mobilização de todas as classes sociais, o radicalismo de massas, o alterar os hábitos quotidianos da sociedade. O que tivemos foi um regime que era conservador, e que, numa época em que o conservadorismo se deixava influenciar pelo fascismo, adotou, integrou no seu seio elementos vincadamente fascistas que, não sendo suficientes para modificar o regime, lhe dão ali um cunho fascizante que não é o mesmo que ser fascista", explica Carlos Martins.

A personalidade de Salazar foi "importante" nesta diferenciação, mas "não só". "O regime não é só o seu líder. Salazar era um líder conservador que conseguia admirar Mussolini na parte do regime corporativo, na parte do combate ao comunismo, mas era tão tradicionalmente elitista, tão conservador que tinha horror a tudo o que fosse mobilização popular, fosse de que ideologia fosse. A mobilização popular implicava o risco de perder o controlo. E isso era perigoso para o regime."

E depois, "claro", "as próprias classes sociais que apoiaram o regime, as elites, a burguesia que apoiou o regime, não encaravam com bons olhos esse tipo de mobilização popular".

Aliás, acrescenta, Carlos Martins, "o fascismo puro não teve um impacto duradouro em Portugal, o que não quer dizer que não tenha havido uma fase do regime do Estado Novo que não tenha tido uma aproximação. Isso aconteceu na segunda metade dos Anos 30, quando Salazar ilegalizou o movimento Nacional-Sindicalismo de Francisco Rolão Preto, marcadamente e assumidamente fascista".

Salazar, que começava a "construção do seu espaço ditatorial", encarou o Nacional-Sindicalismo como "adversário ideológico" e Rolão Preto "como adversário pessoal". Mas não estava sozinho. O líder fascista, que já dizia "ter um exército" e criticava Salazar por "perceber apenas de Finanças" e ignorar a "alma portuguesa que vibra", criava "temor" junto das "classes dominantes", que "preferiam" os alicerces das instituições tradicionais, como a Igreja e o Exército.

Da censura à ilegalização do movimento fascista foi um passo. Não sem que antes o regime tivesse adotado legislação "que formalmente criava um sistema corporativo, parcialmente baseado no fascismo italiano e no corporativismo católico". que enfraqueceu o poder de "sedução" da "propaganda" de Rolão Preto.

O Nacional-Sindicalismo foi ilegalizado, mas deixou réstias. Salazar "abriu a possibilidade a que uma ala integrasse o regime, que alguns nacional-sindicalistas integrassem o regime", os "mais moderados", que abandonaram o "culto a Rolão Preto".

"Dos fascistas que optaram por entrar no regime, muitos até tentaram dar um cunho mais fascista ao regime, fizeram esse esforço. Foi com a criação da Mocidade Portuguesa e da Legião Portuguesa, em 1936, que o regime claramente se aproximou mais do modelo fascista. Ainda que nunca o alcançasse totalmente, porque sendo um regime conservador, nunca conseguiria totalmente reproduzir um regime fascista", esclarece o investigador.

Foi, na prática, resume Carlos Martins, um "regime conservador fascizante". Fernando Rosas diz que se pode falar de "uma natureza de fascismo conservador que declina a seguir à segunda Guerra Mundial". Jaime Nogueira Pinto defende que são "muitas as diferenças entre o fascismo e o Estado Novo. Tantas que dizer que o salazarismo foi fascismo seria o mesmo que chamar comunas aos dirigentes socialistas no pós 25 de Abril".

E hoje, por onde anda o fascismo? Em Portugal, considera o investigador, "diria que o maior fascista é o Mário Machado, com tudo aquilo que lhe conhecemos, com todos os crimes que cometeu. As organizações onde esteve são organizações fascistas. Não será o único certamente. Existe um partido, o PNR, mas que não é capaz de replicar o fascismo, está condenado a ser um pós-fascismo, que nunca se vai tornar num fascismo a sério, embora eles provavelmente o quisessem".

"E depois", acrescenta, "temos o Chega que não é bem fascista, que pode ser apoiado por fascistas, que pode ter alas fascistas dentro do partido e fascistas declarados a apoiá-lo, porque veem o Chega como o que mais se aproxima à ideologia deles. Mas em última análise não vejo o Chega como um partido fascista".

Há também os casos do Aurora Dourada, na Grécia, e dos Falangistas, em Espanha, mas não, não são, felizmente, a maior parte desta nova direita radical, ainda que esta nova direita seja por vezes apoiada por fascistas ou que tenha elementos fascizantes".

"Fascismo não é necessariamente sinónimo de extrema-direita. Há outras ideologias de extrema-direita que não são necessariamente fascismo embora, claro, estejam lá próximas. Uma das principais diferenças é o radicalismo, a violência, o ativismo com que o fascismo encara a hipótese de criar um mundo novo, como se a nação renascesse das cinzas. Os fascistas utilizam métodos muito radicais, ambicionam a transformação da forma como a sociedade está estruturada, das suas elites, das suas classes sociais, na forma como a sociedade está organizada na relação com os seus líderes, nos seus hábitos quotidianos. Os fascistas pretendem transformar a realidade quotidiana num constante ritual de adoração ao líder", explica Carlos Martins.

E países? O caso "mais evidente", no entender de Carlos Martins, é "o regime de Putin, na Rússia, que não sendo estruturalmente um regime fascista está perto, muito perto dos regimes fascistas [Alemanha e Itália] do entre guerras. É um regime conversador fascizante que acomoda princípios fascistas. É talvez o único que pode ser classificado dessa forma hoje em dia. Há ali uma componente fascizante que já não via há algumas décadas. O regime de Putin acomoda princípios fascistas. A ideia do símbolo do Z, por exemplo, e é só um exemplo, espalhado por todo lado, sublinha essa ideia da importância dos símbolos, dos rituais, elemento típico do fascismo".

E quem foram, até hoje, de facto, os regimes fascistas? A resposta de Carlos Martins é imediata. "Os únicos de que se pode dizer sem reservas "isto foi fascismo" foram a Itália e Alemanha Nazi".

Mussolini, "que até foi socialista, foi do Partido Socialista", criou, a 23 de março de 1919, em Milão, na Praça do San Sepolcro, "a primeira organização que pode ser considerada fascismo. O nazismo e o fascismo italiano são duas vertentes da ideologia. E, no limite, aquele em o fascismo tomou uma maior preponderância foi o da Alemanha nazi, porque Mussolini foi obrigado a fazer muitas conciliações com as classes conservadoras e organizações conservadoras. A crise económica é importantíssima, e no caso alemão foi muito importante. Hitler começou a ganhar votos quando a Grande Depressão atacou a sério. No caso italiano isso já não é tão evidente. Não foi a crise económica que motivou o fascismo. A crise económica motivou movimentos socialistas, comunistas, que tentaram ocupar fábricas, propriedades, etc. Foi a reação contra esse movimento de esquerda que fez crescer o fascismo".

Tudo o que "ficou por resolver ou mal resolvido após a Primeira Guerra Mundial: a crise económica, o Tratado de Versalhes, as crenças expansionistas, os desalentos com monarquias e regimes liberais, o anticomunismo, o antiliberalismo, a revolução comunista... tudo isto deixou lastro para uma doutrina, que, naquele contexto histórico, fez sentido para uma parte considerável da população".

As raízes encontram-se "numa certa direita reacionária, quer em Franca, quer em Itália, ultranacionalista, antidemocrática, anti-individualista, que queria constranger as liberdades individuais de modo a criar aquilo a que chamavam uma nação integral, em que a nação se sobrepunha ao indivíduo. Houve também umas gotinhas de pessoas que vieram da esquerda, como Mussolini, que abandonaram a esquerda, mas mantiveram a ideia da revolta da mobilização".

E até, "algumas feministas britânicas, sufragistas, que aderiram ao movimento fascista britânico. Mulheres que tinham lutado pelo direito de voto que, depois, aderiram e achavam que aquilo representava o melhor para as mulheres britânicas".

Ao longo de 300 páginas, Carlos Martins analisa os conceitos centrais do fascismo, as suas semelhanças com outras ideologias, as próprias contradições da ideologia, os casos de Itália e Alemanha, o fracasso do fascismo britânico, a Falange espanhola, o caso brasileiro, francês e romeno e, naturalmente, o caso português. E a longa lista das "organizações fascistas" entre guerras.

E faz sentido o slogan "25 de Abril sempre, fascismo nunca mais?".

"Não me incomoda que o PCP ou outro partido utilize esses slogans. Percebe-se o porquê e estou de acordo com a intenção que está por detrás. Agora, espero é que haja maturidade e lucidez para discutir estes temas. Alguns no PCP não irão gostar muito, talvez haja maior abertura do BE, mas estão no seu direito. Até porque há o outro lado, o de quem procure reduzir o conceito de fascismo para legitimar o regime de Salazar", responde o investigador.

artur.cassiano@dn.pt

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