A morte do espectador

O que é ser espectador de cinema? A pergunta terá novos contornos devido à pandemia, mas já vem de tempos antigos: em jogo está a existência dos filmes como história, memória e património.
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Confesso que não pude evitar um pensamento maldoso ao ler o programa de um novo ciclo proposto pela Medeia Filmes (Nimas, Lisboa, de 1 a 11 de novembro). Trata-se de dar a ver cinco títulos reunidos sob uma insólita designação: "Grandes filmes, grandes flops". São exemplos mais ou menos aparatosos de obras que tiveram uma má performance nas bilheteiras mas que, com o passar dos anos, foram adquirindo, no mínimo, um sólido estatuto de respeitabilidade.

Peço que não me interpretem mal. Celebro sem hesitação esta e outras formas de programação que têm pontuado a zona "independente" da distribuição/exibição. São excelentes variações da oferta cinematográfica, num tempo em que a procura está inevitavelmente condicionada pela conjuntura de pandemia (são também, aliás, matrizes de programação que já existiam antes da pandemia).

Além do mais, o calendário inclui duas obras-primas absolutas do mais visceral romantismo: Lilith (1964), de Robert Rossen, e A Sereia do Mississipi (1969), de François Truffaut. Sem esquecer o maravilhoso 1941 - Ano Louco em Hollywood (1979), de Steven Spielberg, porventura o derradeiro grande espetáculo burlesco que Hollywood gerou, e ainda Paradise Alley/O Beco do Paraíso (1978), comovente reinvenção de um certo romanesco clássico com Sylvester Stallone a acumular as tarefas de argumento, interpretação e realização (esta pela primeira vez), antes de Rambo e afins terem estragado tudo. O programa inclui ainda Showgirls (1995), de Paul Verhoeven, cuja "grandeza" me parece empalidecer face à concorrência... mas porque não?

A maldade consistiria em inverter o título do ciclo e dar a ver "grandes sucessos, péssimos filmes". Seria uma maneira de combater a estupidez militante que insiste em sugerir que a "crítica" tende a desvalorizar tudo o que vende muitos bilhetes e, nessa medida, testar a resistência artística de alguns desses sucessos à passagem do tempo (um capítulo à parte poderia ser dedicado ao cinema português).

Mas é um pormenor. Talvez pudéssemos começar por aí para avaliar algo que, quase sempre, é tratado como assunto tabu. A saber: a qualidade dos próprios espectadores. E a questão não tem nada de irónico, muito menos de reivindicação profissional. Ou seja: ninguém está a sugerir que um espectador se define pela maior ou menor coincidência da sua visão com a "crítica" (entidade que, aliás, não existe como coletivo: há críticos que, com maior ou menor talento, se distinguem por profundas, por vezes inconciliáveis, diferenças). Trata-se de saber quem vê e, sobretudo, como vê os filmes que há para ver.

Não tenho qualquer visão sistematizada do assunto. Sinto-me mesmo confundido pelas suas componentes sociais e simbólicas. Permito-me, por isso, referir um dado de mera observação quotidiana que, a meu ver, se foi adensando. Assim, há cada vez mais pessoas que se referem aos filmes como entidades sem identidade. Literalmente. Com que atores é o filme? Aquele que fez aquele outro filme que também tinha aquele ator que... Quem o realiza? Não sei... Qual o título? Não me lembro...

Será que, pelo menos em parte, este esvaziamento informativo decorre das normas que as mais poderosas plataformas de streaming institucionalizaram para milhões de espectadores de todo o planeta? Uma coisa é certa: tais plataformas dão-se ao luxo de tratar grandes clássicos e as maiores mediocridades com a mesma banalidade informativa, não poucas vezes através de textos que, além de ignorarem que o cinema tem uma história de mais de um século, revelam uma apoteótica indiferença pelos mais básicos valores de escrita.

Perguntar "de quem é a culpa" seria cedermos a uma ética banalmente futebolística em que a imponderabilidade (ou mesmo a beleza) do jogo se transfigura em violenta cruzada moral. Trata-se antes de reconhecer que há um modelo de espectador, chamemos-lhe clássico, que está a morrer. Para muitos, o cinema passou a ser encarado e consumido como uma entidade sem história, sem memória e sem património. Ninguém duvida da inteligência desses "novos" espectadores, mas é um facto que, para eles, o cinema já não é um continente à parte, sendo percorrido como uma paisagem acidental.

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