A dança dos instrumentos
Numa coluna recente ("O génio intolerável", 5/9), sobre o centenário do saxofonista Charlie Parker, comentei que um dos motivos para a campanha desencadeada contra ele pelos jazzófilos conservadores dos anos 1940 e 50 era o facto de o seu instrumento, o sax-alto, ter quase alijado de cena o clarinete, até então um instrumento dominante no jazz. De facto, depois dele, nunca mais surgiram clarinetistas como Johnny Dodds, Sidney Bechet, Jimmie Noone, Barney Bigard, Jimmy Dorsey, Benny Goodman, Artie Shaw, Woody Herman. Noite após noite, quando cada um desses homens tirava o seu instrumento do estojo, a música avançava várias casas no tabuleiro. A partir de Parker, as principais revoluções do jazz seriam comandadas por saxofonistas como Sonny Rollins, John Coltrane, Ornette Coleman.
Na verdade, não era um fenómeno novo - a superação de um instrumento pela erupção de um génio num instrumento similar sempre aconteceu. A pré-história do jazz, por exemplo, foi escrita pelo cornet, e um de seus virtuoses era King Oliver, mentor de Louis Armstrong. Pois foi exatamente o trompete de Louis, cortante e cristalino, que, em 1925, aposentou o cornet e o próprio King Oliver.
A secção rítmica dos grupos primitivos de New Orleans baseava-se na tuba, como já vimos em tantas fotografias antigas, sempre estranhando a presença daquele instrumento meio cómico no que parecia ser uma música tão moderna. Até que, em 1926, Wellman Braud, músico de Duke Ellington, trocou sua tuba pelo contrabaixo, muito mais rítmico e flexível, e só restaram à tuba as bandas militares. Outro sustentáculo daqueles grupos era o banjo, vencido a partir de 1927 pelo violão de Eddie Lang, o qual era capaz não só de sustentar a pulsação como de levar a melodia a novos territórios. E, com Lionel Hampton, em 1935, o vibrafone, muito mais potente e preciso, ultrapassou o humilde xilofone, que as bandas usavam até então.
Pena que vários instrumentos, indispensáveis em outros formatos musicais, nunca tenham tido grandes oportunidades no jazz. Por muito tempo, os únicos sons de órgão que se escutaram foram os produzidos por Fats Waller nos anos 1930. Décadas, décadas depois, surgiram Jimmy Smith, Milt Buckner e Wild Bill Davis, mas ninguém até agora foi capaz de entronizar o órgão no jazz. O acordeão, então, arriscou-se inúmeras vezes a ser enxotado do palco, mas só por quem nunca escutou o que Johnny Meyer, Joe Mooney, Ernie Felice, Art Van Damme e Mat Mathews faziam com ele. E o mesmo com o violino, apesar de ter sido levado ao pescoço por gente como Joe Venutti, Ray Nance, Stephane Grappelli e, nos anos 1980, Jean-Luc Ponty.
A composição das orquestras também variou de acordo com os estilos. As formações dos anos 1920 podiam ser gigantes, como a de Paul Whiteman, com 50 ou 60 componentes, ou com quase isso, como as de Jean Goldkette, Roger Wolf Kahn, George Olsen, Irving Aaronson e os Waring's Pennsylvanians. Eram orquestras tão grandes que, de acordo com a exigência, podiam subdividir-se em pequenas formações, que ameaçavam ser tragadas por aquele mar de músicos. Mas todas tinham um som adocicado, à base de cordas, surdinas e saxofones, que nem a presença de solistas como Bix Beiderbecke ao trompete ou Jack Teagarden ao trombone conseguia turbinar.
Essas orquestras foram superadas nos anos 1930 pelas big bands de swing, com os seus naipes de trompetes, trombones e saxes tocando a plenos pulmões. As suas cozinhas rítmicas não deixavam cair a peteca nem por um segundo e os seus líderes, como Glenn Miller, Tommy Dorsey, Harry James, Les Brown e Gene Krupa, rivalizavam em popularidade com os astros de Hollywood. Era música para dançar, mas quem quisesse apenas escutá-la teria muito que admirar em matéria de arranjos, solos e vocais, estes a cargo de uma turma novata e promissora - rapazes e moças como Frank Sinatra, Peggy Lee, Doris Day, Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan, Billy Eckstine, Dick Haymes, Jo Stafford, Anita O'Day, June Christy, Bob Eberly, Helen O'Connell, Helen Forrest, E havia as big bands negras, como as de Duke Ellington, Count Basie, Jimmie Lunceford, Cab Calloway e Lionel Hampton, que tinham tudo o que as brancas tinham e um balanço natural a que as aquelas só conseguiam chegar quando roubavam os seus arranjadores - como fez Tommy Dorsey ao tomar Sy Oliver de Jimmie Lunceford.
De 1935 a 1942, as big bands americanas formaram uma indústria musical que nada parecia poder destruir. Havia cerca de 500 orquestras funcionando ao mesmo tempo, num total de pelo menos dez mil músicos contratados, viajando o ano inteiro por todos os Estados Unidos em frotas de autocarros próprios, apresentando-se uma noite em cada cidade, gravando discos, estrelando filmes e fazendo programas de rádio. Praticamente toda a música popular do mundo foi influenciada por elas - as do Brasil e de Cuba mais do que todas. Ninguém poderia adivinhar que, com a entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra em dezembro de 1941, a convocação dos músicos para lutar, o racionamento de gasolina e outros fatores levariam à dissolução delas e à morte da indústria do swing.
A música, claro, sobreviveu, mas em outros moldes. Surgiram os pequenos conjuntos, mais enxutos, os trios e quartetos vocais e os cantores solo. Essa seria a música do futuro - até hoje.
Seja como for, havia uma tremenda dinâmica e, durante todo o século XX, a música popular beneficiou dela. Os instrumentos e formações iam sendo superados, mas o processo não parava. Pois isso acabou. Há 30 anos a música popular reduziu-se à guitarra, aos teclados e à percussão, e estacionou por aí. O resto é figuração e pode ser gerado em chocadeira elétrica, digo, em computador.
Jornalista e escritor brasileiro