Trump não pode adiar eleições, mas consegue agitar as águas
No final de abril, o democrata Joe Biden advertiu: "Anotem as minhas palavras, penso que [Trump] vai tentar de alguma forma adiar as eleições, apresentar alguma justificação para o facto de não poderem ser realizadas."
O presidente norte-americano rejeitou então a ideia: "Nunca pensei sequer em mudar a data da eleição. Porque faria eu isso? 3 de novembro. É um bom número. Não, estou ansioso por essa eleição."
Três meses depois, em nova tirada contra o voto por correspondência, deixou no ar a ideia de postergar as eleições. "Adiar as eleições até que as pessoas possam votar de forma adequada, protegida e segura?", tuitou, com três pontos de interrogação.
Coincidência, ou não, a mensagem incendiária de Trump surgiu uns 15 minutos após a notícia do pior desempenho trimestral alguma vez registado da economia dos Estados Unidos, uma contração de 32,9% do PIB.
Além disso, apesar de ter uma base fiel de eleitores, Trump e a sua equipa estarão preocupados com as possibilidades de reeleição. Neste momento, a média de sondagens nacionais dá vantagem ao antigo vice-presidente em 8,3 pontos percentuais. Estados como o Novo México, Colorado, Virgínia, Minnesota e Maine inclinam-se para Biden e o Missouri, anteriormente pró-Trump, poderá cair para qualquer um dos lados.
Segundo a Real Clear Politics, se as eleições fossem hoje Joe Biden asseguraria 222 votos do colégio eleitoral (são necessários 270 para vencer) e Donald Trump 115, sendo incerto os resultados em estados que representam 201 votos. Ou seja, o democrata leva um avanço considerável, pelo que o republicano precisa de recuperar terreno em estados considerados chave para a corrida deste ano, casos da Florida, Texas, Michigan ou Pensilvânia.
Questionado no Congresso sobre a possibilidade do adiamento do processo eleitoral, o secretário de Estado Mike Pompeo alinhou com a sugestão de Trump. "Em última análise, o Departamento de Justiça e outros acabarão por tomar essa decisão legal", disse, dando a entender que caberia ao procurador-geral William Barr a última palavra.
O senador Tim Kaine lembrou que não cabe ao presidente, mas ao Congresso. Uma lei federal de 1845 fixou as eleições presidenciais (bem como as dos senadores e dos congressistas) na primeira terça-feira após a primeira segunda-feira de novembro.
É possível mudar a data das eleições, assim a Câmara dos Representantes legisle e aprove, e receba luz verde do Senado luz posteriormente. Dada a relação de forças atual (maioria democrata na Câmara dos Representantes) ninguém espera esta iniciativa.
Há quem tema, porém, alguma manobra na Casa Branca para adiar ou anular as eleições com o pretexto de que não há condições, quer devido à pandemia, quer devido à possibilidade de fraude eleitoral, para o ato eleitoral.
Um cenário possível, nos estados de maioria republicana e com governador também desse partido, é legislar para permitir a eleição do presidente de forma indireta e não através do voto popular. Ou seja, seria o parlamento estadual a escolher os representantes do colégio eleitoral que elegem o presidente federal. Não sendo ilegal, vai contra a tradição do país: à exceção da Carolina do Sul, em todos os estados os membros do colégio eleitoral são escolhidos por voto popular desde 1832
Ainda que as eleições não se realizassem por algum motivo, a lei estipula que o mandato do presidente, do vice-presidente "terminam ao meio-dia do dia 20 de janeiro" seguinte. Seguindo a linha de sucessão caberia à presidente da Câmara dos Representantes Nancy Pelosi assumir a Casa Branca, mas sem eleições a Câmara também ficaria sem presidente nem representantes, pelo que se teria de passar para o próximo da linha de sucessão, o presidente pro tempore do Senado, um cargo simbólico, e que distingue o senador mais velho em funções do partido em maioria.
A Vox fez as contas e, como há 35 lugares em disputa, a maioria dos quais atualmente nas mãos de republicanos, com os atuais 65 senadores os democratas ficariam em maioria. O inesperado presidente, em tais circustâncias, seria o senador de Vermont Patrick Leahy, de 80 anos.
Quem teme Trump e as suas manobras recorda que a sua base eleitoral não se cansava de pedir que continue na Casa Branca para lá de 2024 (o limite legal de dois mandatos sucessivos) e o próprio partilhou várias vezes mensagens com esse teor no Twitter.
Com várias investigações judiciais à perna, Trump tudo fará para se manter no poder, alegam alguns críticos. Não realizar eleições ou não aceitar os resultados são cenários possíveis para quem em 2018, mostrou admiração pelo presidente chinês Xi Jinping não ter limites de mandatos. "Penso que é ótimo. Talvez um dia possamos experimentar isso", afirmou.
O seu alvo em relação às eleições são o voto por correspondência. Desde abril que no Twitter tem vindo a instilar o medo de que a votação universal por correio levará a resultados fraudulentos.
"Os Estados Unidos não podem ter todos os votos por correspondência. Serão as eleições mais fraudulentas da história. As pessoas retiram-nas das caixas de correio, imprimem milhares de falsificações e "forçam" as pessoas a assinar. E também, forjar nomes", escreveu há dois meses.
Não existem quaisquer provas que sustentem esta alegação.
A teoria foi secundado pelo procurador-geral William Barr em entrevista ao The New York Times.
Há sete estados (Califórnia, Colorado, Havai, Oregon, Utah, Vermont e Washington) de voto universal por correspondência, que é um sistema no qual os estados enviam automaticamente um boletim de voto a todos os eleitores registados. O boletim de voto pode depois ser devolvido por correio ou entregue pessoalmente nas assembleias de voto.
O estado do Oregon foi o primeiro estado a adotar esta prática em 2000. Desde então, em mais de 100 milhões de boletins de voto só registou 12 casos de fraude.
"Os funcionários eleitorais passam uma grande parte do tempo a construir medidas de segurança", disse à NPR a secretária de Estado de Washington, Kim Wyman, uma republicana, que rejeita a hipótese de se imprimirem milhões de boletins de voto falsificados dentro ou fora do país e passar pelas medidas de controlo.
"Os boletins de voto são elaborados de forma única para cada eleição. Cada jurisdição terá normalmente dezenas a centenas de versões únicas de boletins de voto. As provas para cada modelo de boletim de voto são revistas e testadas para assegurar que os scanners de voto irão ler esses boletins e apenas esses boletins," diz por sua vez Jennifer Morrell, consultora sobre processos eleitorais.
Trump terá querido sondar o terreno, mas além dos seus indefectíveis não conseguiu mais do que silêncios. Caso raro, vários republicanos mostraram-se abertamente contra o presidente.
"Nunca na história do país, durante as guerras, depressões e a Guerra Civil, não se realizaram as eleições federais a tempo, e vamos encontrar uma forma de o fazer novamente este 3 de novembro", disse o líder republicano do Senado, Mitch McConnell.
Outro aliado de Trump, o senador Marco Rubio, disse apenas: "Quem me dera que não tivesse dito isso. Vamos ter eleições, vão ser legítimas."
No mesmo dia em que Trump lançou esta tempestade realizou-se a cerimónia fúnebre do representante John Lewis, figura de proa do movimento pelos direitos civis.
"Votar e participar no processo democrático são fundamentais. O voto é o mais poderoso instrumento de mudança não violento de que se dispõe numa sociedade democrática. Deve ser usado porque não está garantido", lê-se no texto de John Lewis que o próprio pediu para ser publicado (no New York Times) no dia do seu funeral.
Na cerimónia, também Barack Obama não deixou passar a jogada de Trump em branco. "Há quem esteja no poder a fazer o seu maior esforço para desencorajar as pessoas de votarem", disse, num discurso em que apresentou sete ideias para melhorar o sistema eleitoral.
Horas depois, Trump mostrou-se satisfeito pelo facto de os meios de comunicação estarem a falar sobre os "riscos" do "perigoso" voto universal por correspondência e que se têm de saber os resultados na própria noite eleitoral, e não "dias, meses ou até anos depois".