Timor-Leste. Os anónimos da resistência maubere

Mala de viagem (177). Um retrato muito pessoal de Timor-Leste.

O primeiro novo Estado do século XXI tem uma paisagem inesquecível, excelentes locais para mergulho, a melhor média mundial de Prémios Nobel da Paz "per capita" e uma população que gosta muito de futebol, sendo este tema um bom início de conversa. Porém, talvez o facto mais relevante seja o português como uma das duas línguas oficiais. Essa é a maior riqueza que Portugal deixou, apesar de ter sido proibida durante a ocupação indonésia, recuperada após a independência e difundida pelo contingente de professores portugueses que aí lecionam. Sentados num banco de café no primeiro dia, um idoso explicou-me a lenda do nascimento do país: "Esta ilha foi criada a partir do corpo de um crocodilo, por isso a semelhança com o nosso mapa. Já reparou bem? A lenda conta a história de um crocodilo idoso que vagueava pelo mar em busca de comida, mas não encontrava. Vendo a tristeza do animal, uma criança aproximou-se e ofereceu-se para ajudá-lo. Os dois tornaram-se grandes amigos. Por vezes, o crocodilo sentia vontade de devorar o menino, mas não o fazia, pois era grato à ajuda que havia recebido dele. A criança navegava nas costas do crocodilo até que um dia o animal morreu e o seu corpo se transformou numa ilha, a que se deu o nome de Timor." Gravei no telemóvel, enquanto o ancião timorense falava e ambos bebíamos sumo de moringa e coco. Presentemente, o crocodilo ainda é considerado um ser sagrado e, portanto, a sua caça é terminantemente proibida. A costa de Timor-Leste possui muitos crocodilos, daí que em algumas das praias o banho não seja recomendado. O meu companheiro de mesa adianta: "Apesar disso, os nossos pescadores não são temerosos, conhecem bem o mar e trazem-nos os seus frutos." E logo pediu ao dono do café que trouxesse um caril à moda dos pescadores de Oé-cusse, um enclave costeiro da ilha. Trata-se de uma receita timorense e uma especialidade daquela casa, e explicou-me: "É um prato simples e nosso. Eu próprio o faço na minha casa. Basta ter camarões, cebola, açafrão, óleo, molho de tamarindo, leite de coco, sal e pimenta. Nunca cortar a cabeça do camarão, porque é o que dá mais sabor. O arroz branco acompanha." Só da explicação quase que fiquei almoçado. Poucos minutos depois, vieram os dois pratos a fumegarem, como convém, e repetimos a bebida. Contou-me que fora um dos guerrilheiros que acompanharam Xanana Gusmão nas montanhas, mas nunca pertenceu ao núcleo duro, escondidos entre os cumes de Matebian, as montanhas gémeas, parte da cordilheira que cruza Timor. "Estávamos preparados para morrer em nome da nossa terra", disse com lágrimas nos olhos, "no início, éramos cerca de 50.000 guerrilheiros". Muito jovem, no início dos anos 70, esteve com José Ramos-Horta na organização nacionalista, "e ficámos esperançosos quando Portugal anunciou a intenção de conceder a autodeterminação ao Timor Português, mas veio a desestabilização provocada pela Indonésia, que tinha interesse económico em Timor-Leste." Mesmo depois da independência como República Democrática de Timor-Leste, deu-se a invasão. "Xanana foi buscar-me para a resistência, e a muitos outros, de aldeia em aldeia, e o resto da história todos a conhecem." No final do almoço e da conversa, senti que Alex era um dos muitos heróis anónimos da história da resistência de Timor-Leste. O anonimato deve conduzir, porém, à vontade e à oportunidade para um encontro real, tal como aquele em que daquele anónimo ouvi e anotei coisas do passado bem presente, se bem que tenha sido um encontro acidental. E, quando o inesperado me sorri, como não lhe sorrir de volta?

Jorge Mangorrinha, professor universitário e pós-doutorado em turismo, faz um ensaio de memória através de fragmentos de viagem realizadas por ar, mar e terra e por olhares, leituras e conversas, entre o sonho que se fez realidade e a realidade que se fez sonho. Viagens fascinantes que são descritas pelo único português que até à data colocou em palavras imaginativas o que sente por todos os países do mundo. Uma série para ler aqui, na edição digital do DN.

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