A "nossa" vacina e o azar "deles"

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Numa semana que foi marcada pela esperança trazida pelo arranque da vacinação contra a covid-19, é natural que cada um de nós se centre mais na questão "quando chegará a minha vez?" do que no processo de vacinação a nível global ou das desigualdades que daí decorrem.
É natural mas não é aceitável.

Vamos aos factos. Sendo uma crise global, a pandemia afeta de forma desproporcional os países mais pobres. Não têm verdadeiras condições de adotar soluções de confinamento e de distanciamento social. Não dispõem de sistemas de saúde capazes de enfrentar esta pressão adicional (em cima de problemas como ébola, tuberculose, malária, VIH, hepatite). E no plano económico, enfrentam uma tempestade perfeita: a recessão já se faz sentir em mais de 90 países em vias de desenvolvimento; a lacuna de financiamento anual (que se cifrava antes da pandemia em 2,5 biliões de dólares) agravou-se em 1,7 biliões de dólares, ditada por mais necessidades domésticas para enfrentar as consequências sociais e económicas da pandemia e por menos financiamento externo; o endividamento excessivo que já se fazia sentir antes da pandemia não lhes dá qualquer margem para políticas orçamentais de aumento da despesa pública e o aumento da pobreza não permite o aumento da carga fiscal.

As consequências são devastadoras: mais 115 milhões de pessoas atiradas para uma situação de pobreza extrema em 2020 e 2021. Em poucos meses, perderam-se os ganhos de três décadas de combate à pobreza nos países em vias de desenvolvimento, conseguidos através da globalização, da revolução tecnológica, da abertura dos mercados e da cooperação internacional.

Ainda é cedo para fazer uma avaliação definitiva da resposta global à crise pandémica, mas já é possível afirmar, como se conclui do relatório da OCDE "Learning from crisis, building resilience", que esta crise aumentou as desigualdades dentro e entre países e que a cooperação e a solidariedade internacionais ficaram aquém do necessário. Os países mais ricos mobilizaram, em poucas semanas, para si próprios, mais de 11 biliões de dólares de pacotes de estimulo económico e de combate à crise económica e social, mas continuam a expressar reservas no aumento da ajuda pública ao desenvolvimento que se situa, há vários anos, em cerca de 150 mil milhões dólares. Por outro lado, os países do G20 anunciaram medidas de alívio do serviço da dívida, mas ainda não se avançou para o indispensável e incontornável perdão da dívida aos países mais pobres.

Vem isto a propósito do risco de agravamento das desigualdades no processo de vacinação a nível global. Se é verdade que a coordenação dos países foi determinante, em torno da COVAX (coligação para as vacinas), para a aceleração da investigação, do desenvolvimento e da produção das vacinas, não é menos verdade que este processo não garante o acesso equitativo à vacinação a nível global. Infelizmente, ainda faltam cinco mil milhões de dólares para assegurar a distribuição de mil milhões de vacinas aos 92 países de rendimento baixo ou médio. Se nada fizermos, apenas um em cada dez cidadãos dos países mais pobres terá acesso à vacinação contra a covid-19.

Além de imoral, a falta de solidariedade com os países mais pobres é, neste contexto, irracional: não haverá fim da pandemia se esta não for travada também nos países mais pobres; e não haverá recuperação da economia global se não houver crescimento nos países em vias de desenvolvimento.


Diretor da Cooperação para o Desenvolvimento da OCDE; fundador da Plataforma para o Crescimento Sustentável.

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