Referendo, o pecado original 

Esta suspensão é o lançamento de uma campanha eleitoral em que Boris Johnson quer aparecer como o campeão do povo contra as elites, o parlamento neste caso. A primeira entrada de qualquer cartilha populista.
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Afirmar que o instrumento que Boris Johnson utilizou para suspender os trabalhos do parlamento inglês é uma machadada mortal na democracia representativa é, convenhamos, um exagero. No entanto, é um sinal avançado da sua degradação e um claro abuso de poder. Como dizia um humorista inglês, os britânicos querem sair da União Europeia para o parlamento retomar o controlo do seu país e mesmo antes de sair foi já silenciado por alguém que nem sequer foi eleito.

O verdadeiro atentado aconteceu no momento da convocação do referendo e, para esse efeito, não é relevante o resultado obtido. O instituto do referendo é a arma de destruição maciça das democracias representativas. Através dele, os representantes eleitos prescindem do mandato que os cidadãos lhes conferiram para passarem a ser uma espécie de marionetas inúteis. Têm o potencial de gerar conflitos inconciliáveis, como é o caso do que gerou o Brexit: os representantes do povo eram maioritariamente contra e o resultado foi o conhecido.

É exatamente para tratar de assuntos complexos, que exigem estudo, ponderação, cálculo das vantagens e inconvenientes, que nós decidimos escolher representantes. Ninguém se lembraria de perguntar a uma assembleia de ignorantes em medicina qual deve ser o método que um médico deve utilizar para fazer uma operação cirúrgica. Escolhemos sim aquele que julgamos o melhor e deixamo-lo proceder dentro de certos limites, se não for bom mudamos de médico.

O caso do referendo à saída do Reino Unido da União Europeia é exemplar. Pedir a um cidadão que calcule todas as consequências de um ato destes e responda simplesmente sim ou não é um verdadeiro crime. Se para pessoas que fazem da sua vida o estudo destas questões (os políticos, pois claro) esta tarefa seria sempre gigantesca, o que se pode dizer de um cidadão comum que tem um tempo limitadíssimo e escassos conhecimentos para refletir sobre o assunto.

Faz sempre sentido invocar o conservador irlandês Edmund Burke quando dizia que os nossos representante nos devem não só o seu trabalho mas o seu julgamento, e nos traem e não nos servem se se sacrificam às nossas opiniões. No fundo, são nossos representantes, não mandatários.

Aliás, faz pouco ou nenhum sentido o que muitos comentadores ingleses dizem sobre os britânicos terem dito que queriam abandonar a UE mas com acordo. Onde estava isso escrito? Que tipo de acordo? Quem diz que sair quer dizer sair tem toda a razão. A não ser que se tivesse de referendar linha a linha um tratado. A uma pergunta estúpida corresponde normalmente uma resposta estúpida.

E se na sua raiz o referendo já é um crime de lesa-democracia, a capacidade de manipular um sufrágio deste tipo cresceu brutalmente com os novos meios de comunicação. Mesmo antes de estes existirem, já Fareed Zakaria em 2003, no livro O Futuro da Liberdade, alertava para a capacidade de decidir um referendo estar sobretudo na capacidade financeira de uma das partes para promover as suas posições e, logicamente, na forma de as difundir. O do Brexit foi uma vez mais exemplar nesse aspeto. A quantidade de mentiras, de omissões, de apelo a sentimentos primários a medos difusos somados a uma capacidade quase ilimitada de as difundir apenas confirma a tese do norte-americano.

Se aos representantes do povo britânico já lhes tinham sido tirados os poderes, Boris Johnson apenas concretizou melhor esse facto.

Claro que esta suspensão dos trabalhos parlamentares com a impossibilidade de continuar a procurar uma solução (e não importa se se já se está a tentar isso há muitíssimo tempo ou não) corresponde também a uma jogada tática de tentativa de preservação de poder. Existirão quase de certeza eleições proximamente, e realizem-se antes ou depois de 31 de outubro, sem ou com acordo de saída, Boris esvaziará o partido de Neil Farage e consolidará o seu poder no Partido Conservador.

Por outro lado, esta suspensão é o lançamento de uma campanha eleitoral em que Boris Johnson quer aparecer como o campeão do povo contra as elites, o parlamento neste caso. A primeira entrada de qualquer cartilha populista.

Mais uma vez, num curto espaço de tempo (convém nunca esquecer o irresponsável David Cameron e as verdadeiras razões de ter convocado o referendo: lutas no partido), a Grã-Bretanha vê-se com um líder capaz de pôr em risco um povo e desequilibrar um continente numa altura particularmente complicada para tentar obter poder pessoal. Convenhamos, nada de novo. Era também isto que a democracia representativa queria evitar, controlando o poder de várias formas com os checks and balances, os seus representantes e a lei. A democracia direta tudo despedaça.

Os referendos encaixam como uma luva nos atuais populismos. Melhor, sempre se encaixaram e sempre se encaixarão. Os políticos são vendidos como elites, deixam de ser representantes do povo para ser uma espécie de oligarquia (tese muito em voga também aqui em Portugal pela extrema-direita disfarçada). Do outro lado está o povo personificado por um homem ou uma mulher que é, supostamente, a expressão do seu desejo.

O simplismo das soluções - a resposta sim ou não - é a outra face. Como se fosse possível tratar de um assunto como a saída da UE, por exemplo, com um simples sim ou não geral.

Boris Johnson e o seu sinistro ideólogo Dominic Cummings (vale a pena passar pelo blogue desta criatura para se perceber) estão a seguir passo por passo a cartilha populista, e isto num país que sempre foi para todos os que amam a democracia representativa uma espécie de farol. E se isto acontece no Reino Unido...

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