O começo dos panelaços
Em breve, alguém mandará Bolsonaro àquele lugar em público, e sabe o que acontecerá? Nada. Ele não tem moral para se ofender.
Esta coluna, que, como sabem, sai aos sábados no DN, costuma ser escrita na segunda-feira anterior. Os colunistas semanais têm essa prerrogativa - por não terem uma obrigação mais rigorosa para com o dia-a-dia, podem escrever de modo mais livre, leve e solto, como se diz no Brasil. Mesmo assim, esforço-me para, entre uma e outra crónica mais ligeira, tratar do assunto que mais mobiliza os brasileiros: seu - com o perdão da palavra - presidente Jair Bolsonaro.
O problema é que qualquer coisa que se escreva sobre Bolsonaro na segunda-feira ficará desatualizada pelas novas e inevitáveis barbaridades que ele dirá ou cometerá na terça, na quarta, na quinta e na sexta. É impossível acompanhá-lo. Quando se pensa que ele já foi longe demais ao mandar a Alemanha enfiar seu dinheiro em suas próprias florestas ou dizer que não precisa do dinheiro que a Europa manda de graça para a Amazónia, Bolsonaro supera-se a si mesmo endossando uma mensagem ofensiva à primeira-dama francesa, Brigitte Macron, chamando-a de velha e feia. E, quando não é ele, é alguém em seu nome. Quando o seu ministro da Educação, Abraham Weintraub, chama um presidente estrangeiro - no caso, também o francês Macron - de "oportunista", "calhorda" e "cretino", quem está falando, na verdade, é Bolsonaro. Hoje é segunda-feira, dia 26. Até ao dia 31, quando você tiver este jornal em mãos, ele já terá deixado esses absurdos amplamente para trás, por ter cometido outros ainda piores.
Para o Brasil, Bolsonaro é um desastre sob todos os pontos de vista, menos um - o do jornalismo. Ele é uma infindável notícia. Todos os dias, em vez de passar suas horas de expediente recolhido aos gabinetes oficiais, tratando dos graves problemas do país com os homens que ele escolheu para auxiliá-lo, Bolsonaro faz justamente o contrário - cria outros. Vai para a porta do Palácio do Planalto, sede do governo em Brasília, e, na frente de um séquito de apoiadores laçados pelo Cerimonial para aplaudi-lo, bate boca com os repórteres encarregados de segui-lo. Ele mesmo provoca o assunto e, quando perguntado, responde com a habitual grosseria, numa verborragia recheada de gírias, escatologias e até palavras obscenas. Os jornalistas, mesmo quando ofendidos, pessoalmente ou em grupo, têm mantido até agora uma impecável postura profissional - aguentam calados os insultos e, quando se dirigem a Bolsonaro, fazem-no de maneira protocolar, como deve ser. Mas posso quase ver a hora em que um deles, já farto, mandará Bolsonaro à merda - e sabe o que irá acontecer? Nada.
Bolsonaro rebaixou a fala presidencial a tal nível de tasca de última categoria - com todo o respeito pelas queridas tascas de última categoria - que não poderá se sentir desrespeitado. Como não tem a menor ideia do que seja a boa educação, e muito menos a etiqueta presidencial, achará normal receber de volta um desaforo semelhante aos que despeja contra todo o mundo. É o que faz também com as mensagens que posta no Twitter, emitindo a sua opinião - ou, covardemente, reproduzindo-a, concordando com ela e acrescida de uma risada cafajeste, composta de "kkkkkkkkkk"
Não sei se se usa "kkkkkkkkkk" em Portugal como sinónimo de risos - como "rsrsrs". Espero que não. Até há pouco, no Brasil, a representação gráfica do ato de rir era escrita como "Ha, ha, ha!" - uma risada máscula, grave, sonora. Ultimamente, passou-se a usar "kkkkkkkkkk", cujo som lembra mais um cacarejo, um espasmo galináceo, indigno de um povo que já produziu Machado de Assis, Nelson Rodrigues, Guimarães Rosa - mas perfeitamente aplicável a um presidente que quer transformar o seu país num galinheiro.
O que se pergunta hoje no Brasil é se Bolsonaro conseguirá chegar ao fim do ano. Como se não bastassem todas as potências, nacionais e estrangeiras, que ele chama periodicamente para a briga - os políticos, os juízes, os intelectuais, os artistas, os estudantes, os liberais, as ONG, os países do G7, os países vizinhos etc., etc. -, passou agora a brigar também com funcionários de segundo e terceiro escalões do seu próprio governo (e que ele mesmo nomeou, mas demite como quem troca de gravata), com alguns de seus ministros mais populares (como o da Justiça, Sergio Moro) e até com entidades que o ajudaram a eleger-se, como os homens do agronegócio, da Polícia Federal e da Receita Federal, sem falar em políticos próximos dele e de sua família. A última provocação de Bolsonaro (última, não; última até ao dia 26) é contra os seus próprios eleitores, que começam a sentir-se traídos. O homem que eles elegeram não é o que está sentado no trono em Brasília.
O homem que eles elegeram prometeu acabar com a corrupção no Brasil - mas o que Bolsonaro mais faz é jogar areia nas investigações que atingem um de seus filhos, envolvido até às orelhas num caso suspeito. O homem que eles elegeram ia fazer o Brasil sair da crise - mas, com o seu desinteresse por administração e a sua confusão mental, ninguém, brasileiro ou estrangeiro, quer investir no Brasil. Com isso, a economia está parada e os 13 milhões de desempregados, herdados dos governos do PT, não diminuem.
Talvez por isso se tenham ouvido na semana passada os mesmos sons que decretaram a derrubada de Dilma Rousseff em 2015 - os panelaços. Milhares de pessoas saíram às janelas de seus apartamentos em todas as capitais do Brasil para bater panelas contra Bolsonaro. De milhares a milhões fazendo isto não vai demorar muito.
Jornalista e escritor brasileiro, autor de, entre outros, O Anjo Pornográfico - A Vida de Nelson Rodrigues (Tinta-da-China).