É um Malraux com a idade de Cristo que sonha visitar a rainha de Sabá. O facto de a gentil soberana ter falecido há mais de três mil anos não dissuade o escritor do seu intento fabuloso. Em 1934, consegue reunir os meios necessários para uma expedição de contornos épicos, a um tempo científica e vivencial. "Uma aventura geográfica", chamar-lhe-á..André Malraux conquistara o Goncourt no ano anterior, com A Condição Humana, e, em 1930, o prémio Interallié, com A Estrada Real, dois livros passados a Oriente. Não é, pois, um desconhecido quem se propõe revelar ao mundo a antiga cidade da rainha de Sabá, monarca evocada na Bíblia e no Alcorão. Filho de pais separados, educado no meio de mulheres pela mãe, pela avó e pela tia, com uma infância não muito feliz, Georges André Malraux padece da síndrome de Tourette desde tenra idade, e os tiques faciais irão afectá-lo até ao fim dos seus dias, sem nunca abalarem, porém, a sua espantosa impetuosidade. Autodidacta, não chega sequer a concluir o liceu, mergulhando desde muito novo nos meios literários e artísticos parisienses, onde se destaca como bibliófilo, comerciante de livros raros, editor, homem de letras. Em 1921, casa-se com Clara Goldschmidt, e é com ela que, dois anos mais tarde, irá ao Camboja, onde acaba preso e condenado por furto e contrabando de antiguidades. Clara mobiliza a favor do marido a fina-flor da intelectualidade francesa da época (Aragon, Breton, Mauriac, Gide, Max Jacob) e em finais de 1924 o escritor, agora convertido em ardente crítico do colonialismo na Indochina francesa, regressa ao seu país, onde, entre múltiplas e frenéticas actividades, se dedica à venda de quadros falsos de Picasso e Derain. Pouco depois, em inquietude permanente, parte para o Afeganistão em busca das cabeças greco-budistas, famosíssimas. O casal Malraux separar-se-á formalmente em 1947 e, nas suas memórias, Clara é impiedosa para com a proeza do ex-marido no Iémen, que qualifica como "breve e estéril expedição aeronáutica". Chega mesmo a alinhar com os que duvidaram que aqueles "arqueólogos amadores", como lhes chama, tivessem realmente descoberto a cidade da rainha de Sabá..A aventura conta-se em poucas palavras, tendo sido objecto de uma investigação minuciosa e recente de Jean-Claude Perrier, em livro saído em 2016, onde se lembra, e bem, que hoje, devido à guerra, uma aventura como aquela seria impensável. Num jantar com Édouard Corniglion-Molinier, antigo piloto da Grande Guerra que mais tarde se notabilizará na Guerra de Espanha, na Resistência francesa e como político da IV e da V Repúblicas, Malraux fala da sua ambição de localizar a antiquíssima capital da rainha Melket Shava, plena de mistérios e sortilégios, indo por terra disfarçado de persa. O piloto aconselha-lhe a via aérea, mais rápida e segura. Na manhã seguinte, Malraux acede e, após procurar pilotos que o acompanhem, acaba por convencer Corniglion-Molinier a assumir os comandos da operação. Saint-Exupéry mostrara-se entusiasmado, mas fora impedido pela mulher, cansada das constantes ausências aeronáuticas do marido. O avião, um Farman F 291 é emprestado por um antigo camarada de guerra de Corniglion, e as despesas pagas pelo L'Intransigeant, periódico de Paris que, apesar de imerso numa grave crise financeira, encara com entusiasmo esta epopeia jornalística. É nas suas páginas que, em números sucessivos, Malraux publica o relato deste périplo pelas Arábias. Com grandes dotes de folhetinista, mantém os leitores em suspense até ao dia seguinte, iludindo o essencial: a expedição terá sobrevoado Marib não mais do que uns 15 minutos, nem sequer aterrou no local e dele tirou escassas fotografias, pouco nítidas e concludentes. Pior ainda: ao princípio, não houve sequer a certeza de que aquela era mesmo a cidade da rainha bíblica. As dúvidas iniciais deram lugar a certezas absolutas, sendo Malraux implacável para aqueles que ousaram pôr em causa o valor da sua descoberta, apresentada como retumbante e sensacional. Acompanhados de um mecânico-navegador de apelido Maillard, partem de Orly no dia 23 de Fevereiro de 1934. Escalas em Nápoles, na Tunísia e na Líbia, aterram no Cairo quatro dias depois. No Egipto, fazem turismo, visitam as pirâmides e os museus, são aconselhados pelos arqueólogos franceses aí estacionados a não prosseguir viagem, com o argumento de que aquele projecto não tinha a mínima consistência histórica. Malraux não lhes dá ouvidos, seduzido que estava pelo relato das façanhas de Thomas-Joseph Arnaud, um médico francês que em 1843 estivera em Marib (e de lá fugira montado num burro hermafrodita...), e pelas leituras inspiradoras que fizera na biblioteca da Sociedade de Geografia de Paris. Rumam a Djibuti, entram no Iémen, no dia 7 de Março passam por Moka e por Sanaa, terras remotas, e atingem Marib, ou assim o julgam. No regresso, ainda a Oriente, enviam um telegrama bombástico para a redacção do L'Intransigeant, em que proclamam ao mundo a descoberta da cidade da rainha de Sabá..Mesmo descontando os exageros mitómanos do escritor, a missão comportou inegáveis riscos, com etapas de 1500 a 1800 quilómetros por dia, sem escalas, sobrevoando desertos inóspitos, pejados de tribos hostis que várias vezes tentaram alvejar a aeronave e os seus tripulantes. Prevendo a hipótese de uma aterragem forçada, levavam a bordo vestes de beduínos e, para aliviar a carga, decidiram viajar sem TSF, estando pois isolados de qualquer contacto com o mundo: orientaram-se apenas pela bússola e por um mapa que lhes havia sido oferecido no Cairo por um piloto egípcio. Com o combustível racionado, enfrentaram tempestades iminentes, sendo obrigados a mudar de rota em diversas ocasiões. No final do raide, já em segurança, são convidados a visitar o Rei dos Reis, Hailé Sélassié I, que se proclamava descendente directo dos amores havidos entre Salomão e a rainha de Sabá. Conversam em francês com o monarca no seu palácio sumptuoso de Addis Abeba, rodeados de jaulas com leões adormecidos. Malraux e o Négus rever-se-ão anos depois, por breves instantes, na catedral de Notre-Dame de Paris, nas exéquias fúnebres do general de Gaulle..A verdade verdadeira é que, ao que tudo indica, Malraux e os seus dois companheiros não descobriram Marib, a urbe lendária da rainha de Sabá, antigo mercado mundial dos perfumes. Ter-se-ão limitado, na melhor das hipóteses, a sobrevoar um oásis onde existiam algumas ruínas e pequenos aglomerados populacionais: Asahil Rymen, Kharib e Duraib. Tal não impediu o escritor de se apresentar em grande estilo e pose cinematográfica, cabelo com brilhantina e cigarro ao canto da boca, pronto a enfrentar o deserto e o pó dos séculos com uma écharpe de caxemira e um sobretudo Lanvin de pêlo de camelo lançado negligentemente sobre os ombros. André Malraux terá sido dos primeiros a aperceber-se do imenso poder da imprensa e da imagem na projecção pública dos intelectuais. Muitos tentaram - e tentam - seguir-lhe os passos. Poucos o fazem com o seu charme e a sua graça. É pena..Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.
É um Malraux com a idade de Cristo que sonha visitar a rainha de Sabá. O facto de a gentil soberana ter falecido há mais de três mil anos não dissuade o escritor do seu intento fabuloso. Em 1934, consegue reunir os meios necessários para uma expedição de contornos épicos, a um tempo científica e vivencial. "Uma aventura geográfica", chamar-lhe-á..André Malraux conquistara o Goncourt no ano anterior, com A Condição Humana, e, em 1930, o prémio Interallié, com A Estrada Real, dois livros passados a Oriente. Não é, pois, um desconhecido quem se propõe revelar ao mundo a antiga cidade da rainha de Sabá, monarca evocada na Bíblia e no Alcorão. Filho de pais separados, educado no meio de mulheres pela mãe, pela avó e pela tia, com uma infância não muito feliz, Georges André Malraux padece da síndrome de Tourette desde tenra idade, e os tiques faciais irão afectá-lo até ao fim dos seus dias, sem nunca abalarem, porém, a sua espantosa impetuosidade. Autodidacta, não chega sequer a concluir o liceu, mergulhando desde muito novo nos meios literários e artísticos parisienses, onde se destaca como bibliófilo, comerciante de livros raros, editor, homem de letras. Em 1921, casa-se com Clara Goldschmidt, e é com ela que, dois anos mais tarde, irá ao Camboja, onde acaba preso e condenado por furto e contrabando de antiguidades. Clara mobiliza a favor do marido a fina-flor da intelectualidade francesa da época (Aragon, Breton, Mauriac, Gide, Max Jacob) e em finais de 1924 o escritor, agora convertido em ardente crítico do colonialismo na Indochina francesa, regressa ao seu país, onde, entre múltiplas e frenéticas actividades, se dedica à venda de quadros falsos de Picasso e Derain. Pouco depois, em inquietude permanente, parte para o Afeganistão em busca das cabeças greco-budistas, famosíssimas. O casal Malraux separar-se-á formalmente em 1947 e, nas suas memórias, Clara é impiedosa para com a proeza do ex-marido no Iémen, que qualifica como "breve e estéril expedição aeronáutica". Chega mesmo a alinhar com os que duvidaram que aqueles "arqueólogos amadores", como lhes chama, tivessem realmente descoberto a cidade da rainha de Sabá..A aventura conta-se em poucas palavras, tendo sido objecto de uma investigação minuciosa e recente de Jean-Claude Perrier, em livro saído em 2016, onde se lembra, e bem, que hoje, devido à guerra, uma aventura como aquela seria impensável. Num jantar com Édouard Corniglion-Molinier, antigo piloto da Grande Guerra que mais tarde se notabilizará na Guerra de Espanha, na Resistência francesa e como político da IV e da V Repúblicas, Malraux fala da sua ambição de localizar a antiquíssima capital da rainha Melket Shava, plena de mistérios e sortilégios, indo por terra disfarçado de persa. O piloto aconselha-lhe a via aérea, mais rápida e segura. Na manhã seguinte, Malraux acede e, após procurar pilotos que o acompanhem, acaba por convencer Corniglion-Molinier a assumir os comandos da operação. Saint-Exupéry mostrara-se entusiasmado, mas fora impedido pela mulher, cansada das constantes ausências aeronáuticas do marido. O avião, um Farman F 291 é emprestado por um antigo camarada de guerra de Corniglion, e as despesas pagas pelo L'Intransigeant, periódico de Paris que, apesar de imerso numa grave crise financeira, encara com entusiasmo esta epopeia jornalística. É nas suas páginas que, em números sucessivos, Malraux publica o relato deste périplo pelas Arábias. Com grandes dotes de folhetinista, mantém os leitores em suspense até ao dia seguinte, iludindo o essencial: a expedição terá sobrevoado Marib não mais do que uns 15 minutos, nem sequer aterrou no local e dele tirou escassas fotografias, pouco nítidas e concludentes. Pior ainda: ao princípio, não houve sequer a certeza de que aquela era mesmo a cidade da rainha bíblica. As dúvidas iniciais deram lugar a certezas absolutas, sendo Malraux implacável para aqueles que ousaram pôr em causa o valor da sua descoberta, apresentada como retumbante e sensacional. Acompanhados de um mecânico-navegador de apelido Maillard, partem de Orly no dia 23 de Fevereiro de 1934. Escalas em Nápoles, na Tunísia e na Líbia, aterram no Cairo quatro dias depois. No Egipto, fazem turismo, visitam as pirâmides e os museus, são aconselhados pelos arqueólogos franceses aí estacionados a não prosseguir viagem, com o argumento de que aquele projecto não tinha a mínima consistência histórica. Malraux não lhes dá ouvidos, seduzido que estava pelo relato das façanhas de Thomas-Joseph Arnaud, um médico francês que em 1843 estivera em Marib (e de lá fugira montado num burro hermafrodita...), e pelas leituras inspiradoras que fizera na biblioteca da Sociedade de Geografia de Paris. Rumam a Djibuti, entram no Iémen, no dia 7 de Março passam por Moka e por Sanaa, terras remotas, e atingem Marib, ou assim o julgam. No regresso, ainda a Oriente, enviam um telegrama bombástico para a redacção do L'Intransigeant, em que proclamam ao mundo a descoberta da cidade da rainha de Sabá..Mesmo descontando os exageros mitómanos do escritor, a missão comportou inegáveis riscos, com etapas de 1500 a 1800 quilómetros por dia, sem escalas, sobrevoando desertos inóspitos, pejados de tribos hostis que várias vezes tentaram alvejar a aeronave e os seus tripulantes. Prevendo a hipótese de uma aterragem forçada, levavam a bordo vestes de beduínos e, para aliviar a carga, decidiram viajar sem TSF, estando pois isolados de qualquer contacto com o mundo: orientaram-se apenas pela bússola e por um mapa que lhes havia sido oferecido no Cairo por um piloto egípcio. Com o combustível racionado, enfrentaram tempestades iminentes, sendo obrigados a mudar de rota em diversas ocasiões. No final do raide, já em segurança, são convidados a visitar o Rei dos Reis, Hailé Sélassié I, que se proclamava descendente directo dos amores havidos entre Salomão e a rainha de Sabá. Conversam em francês com o monarca no seu palácio sumptuoso de Addis Abeba, rodeados de jaulas com leões adormecidos. Malraux e o Négus rever-se-ão anos depois, por breves instantes, na catedral de Notre-Dame de Paris, nas exéquias fúnebres do general de Gaulle..A verdade verdadeira é que, ao que tudo indica, Malraux e os seus dois companheiros não descobriram Marib, a urbe lendária da rainha de Sabá, antigo mercado mundial dos perfumes. Ter-se-ão limitado, na melhor das hipóteses, a sobrevoar um oásis onde existiam algumas ruínas e pequenos aglomerados populacionais: Asahil Rymen, Kharib e Duraib. Tal não impediu o escritor de se apresentar em grande estilo e pose cinematográfica, cabelo com brilhantina e cigarro ao canto da boca, pronto a enfrentar o deserto e o pó dos séculos com uma écharpe de caxemira e um sobretudo Lanvin de pêlo de camelo lançado negligentemente sobre os ombros. André Malraux terá sido dos primeiros a aperceber-se do imenso poder da imprensa e da imagem na projecção pública dos intelectuais. Muitos tentaram - e tentam - seguir-lhe os passos. Poucos o fazem com o seu charme e a sua graça. É pena..Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.