14 montanhas em 190 dias. O "feito notável" de Purja, mesmo com ajuda

Puristas do montanhismo garantem que só conseguiu tamanha proeza com recurso a ajuda - recorreu por exemplo a oxigénio artificial. "Merece todo o meu reconhecimento", diz o português João Garcia.

Nirmal Purja, montanhista nepalês de 36 anos que chegou a fazer parte de um corpo de elite do Exército britânico formado por nepaleses, alcançou nesta terça-feira uma proeza que muitos consideravam impossível de concretizar - completou a escalada das 14 montanhas mais altas do mundo (conhecidas como as oito mil) num tempo recorde de 190 dias. Para se perceber a grandeza deste feito basta ter como termo de comparação o anterior recorde, que pertencia ao sul-coreano Kim Chang-ho, que demorou sete anos, dez meses e seis dias a escalar os mesmos 14 cumes.

Ao contrário de Chang-ho, que não tinha como objetivo bater recordes quando terminou a escalada das 14 de 8000 metros entre 2005 e 2013 - e fê-lo sem recurso a oxigénio e outras tecnologias -, Nirmal Purja montou uma megaoperação, pagou uma pequena fortuna e não deixou nada ao acaso. Por isso esta sua façanha está a ser contestada pelo facto de contrariar o purismo e até um certo romantismo das escaladas de grandes montanhas.

"Tenho alguma admiração pelo feito deste homem. Ele deve estar como eu me sentia em 2010, como um fórmula 1 [João Garcia completou nesse ano a escalada das 14 montanhas 8000]. Mas há aqui dois ou três aspetos que devem ser salientados. Nas montanhas mais altas ele utilizou oxigénio, ao contrário das 14 pessoas, em que me incluo, que o fizeram sem recurso a isso. Depois há quem carregue todo o equipamento do campo-base até lá acima, o que provoca um grande desgaste físico. Ele teve certamente a ajuda de xerpas nesse tipo de coisas", disse ao DN o alpinista português João Garcia.

João Garcia destaca ainda que Nirmal Purja "teve sorte com a meteorologia e até numa questão burocrática, ao conseguir uma autorização especial para entrar na China" e, assim, poder escalar a Shishapangma e culminar a sua expedição: "Mas apesar de todas estas 'ajudas', não deixa de ser um feito notável, sobretudo em termos físicos, para um alpinista que foi mais na ótica de popstar. Ele fez algo que se pode comparar ao desejo expresso um dia por Carlos Lopes, de ver alguém completar a maratona abaixo das duas horas. E há uns dias tivemos um atleta [o queniano Eliud Kipchoge] que o fez. Um feito que foi criticado, a meu ver injustamente, porque teve ajuda de lebres, sapatilhas especiais e outras coisas. Mas conseguiu. Tal como agora este homem."

Por isso, João Garcia acha que o feito de Nirmal Purja deve ser homologado e considerado um recorde, apesar de ter sido conseguido com recurso a oxigénio artificial, ao contrário do que outros 14 alpinistas, o português incluído, conseguiram no passado: "É sem dúvida um grande feito e arrisco-me a dizer que nos próximos tempos ninguém irá conseguir bater este recorde. Merece todo o meu reconhecimento."

Helicóptero e outros recursos

Purja deu início ao Project Possible quando por volta das 14.00 do dia 23 de abril atingiu o cume da Annapurna, uma das montanhas 8000 do Nepal, e também das mais perigosas e mortais - 61 pessoas já morreram ao tentar este desafio. Foi o início da aventura a que se propôs, mas que na realidade muito poucos deram crédito inicialmente. Não só pelo facto de o anterior escalador ter demorado sete anos a subir as 14 montanhas, mas também porque o nepalês não era propriamente uma referência no montanhismo.

Depois da Annapurna seguiram-se as escaladas de Dhaulagiri (8167 metros), Kanchenjunga (8586), Evereste (8848), Lhotse (8516), Makalu (8481), Nanga Parbat (8126), Gasherbrum I (8080), II (8036), Broad Peak (8051), K2 (8611), Manaslu (8163), Cho Oyu (8188) e finalmente Shishapangma (8.027), no Tibete, nesta terça-feira. As escaladas do Evereste, de Lhotse e de Manaslu foram alcançadas em menos de 48 horas e, para ganhar tempo, Nirmal Purja deslocou-se de helicóptero do campo-base de Lhotse para Manaslu.

O recurso ao helicóptero foi apenas uma das críticas feitas pelos mais puristas a Nirmal Purja, que se fez acompanhar de uma grande equipa, utilizou oxigénio artificial e cordas especiais, traçou rotas com recurso a tecnologia avançada e até beneficiou de uma autorização especial do governo chinês para poder entrar no Tibete e escalar a Shishapangma.

Polícia de trânsito no Evereste

A expedição de Purja teve também coisas dignas do mais purista dos montanhistas, como o facto de ter ajudado a salvar vidas. Em abril, quando descia a Annapurna, foi informado de que um alpinista malaio estava em risco. E foi ele que comandou o resgate e o levou ao hospital. Apesar dos esforços, o alpinista em questão acabou por morrer. Já neste mês, em Kangchenjunga, encontrou dois aventureiros em dificuldades. Deu-lhes oxigénio, ajudou-os a descer e salvou-lhes a vida.

Nirmal Purja, que é também um exímio fotógrafo, foi ainda o autor da famosa fotografia que em maio apareceu nas capas de jornais como o The New York Times, o Bild ou o The Times of India, com mais de 200 pessoas a tentarem chegar ao cume do Evereste, uma foto que deixava a nu o comércio em que se transformaram as expedições à famosa montanha, que passaram a ser uma atração para turistas que não estão minimamente preparados.

"De repente fiquei parado, sem conseguir mexer-me. Havia mais de 200 pessoas a tentar subir. Olhei à minha volta e tirei a fotografia. Tirei as luvas. Tinha as mãos geladas e os dedos dormentes, mas queria fazer a fotografia como prova do que se passa. Claro que estava preocupado quando vi esta fila gigantesca. O vento era de uns 35 km/h. Se tivesse sido cinco quilómetros a mais, tinha havido mais mortos nesse dia. Fiquei ali como se fosse um polícia de trânsito, a orientar aquele engarrafamento humano durante uma hora e meia. Toda a gente queria subir e toda a gente queria descer. O que fiz foi parar e controlar o trânsito, mandava gente para baixo e para cima continuamente", contou Purja ao jornal espanhol El País.

Em 2016, numa entrevista ao DN, o alpinista português João Garcia já tinha chamado a atenção para o negócio em que se tinha transformado a escalada da famosa montanha entre o Nepal e o Tibete. "O Evereste é uma feira de vaidades. Está cheio de gente que não partilha os ideais do montanhismo, gente sem preparação, que nunca escalou um 7000, muito menos um 8000, mas que quer colecionar um troféu - e que paga muito bom dinheiro por isso. Neste momento já não é o governo do Nepal quem dita as regras... Elas existem, mas os nepaleses não fazem grande força para as impor, porque receiam que as grandes agências se mudem para o lado norte [Tibete] e o país perca uma fonte importante de receitas do turismo. Portanto, quem manda, como em qualquer negócio, é quem tem o dinheiro, as grandes agências, que até se dão ao luxo de fazer guerrilha mediática na imprensa nepalesa contra uma concorrente local que cobra preços mais baixos."

Das tropas especiais ao montanhismo

Nirmal Purja, conhecido por Nims, não nasceu a querer escalar montanhas. Cresceu com o sonho de se tornar um gurkha, elemento do corpo de elite do exército britânico formado por nepaleses, seguindo os passos do pai e dos irmão mais velhos. E quando fez 18 anos juntou-se à unidade de forças especiais da Marinha Real Britânica, onde passou seis anos. "Ser um gurkha era o meu único sonho. Era a única coisa que eu queria fazer", disse há uns anos numa entrevista ao site da Red Bull, ele que nasceu na pequena localidade de Dana, no Nepal, e cresceu depois em Chitwan, curiosamente, como disse, "a parte mais plana de todo o Nepal".

A paixão pelas montanhas surgiu em dezembro de 2012, durante uma expedição ao base camp do Evereste. "Adorei o passeio... mas na altura foi apenas a paisagem", contou. Mas logo na altura pediu ao guia que o acompanhou que lhe ensinasse a arte de escalar. E pouco tempo depois aventurou-se a escalar a Lobuche East, uma montanha com seis mil metros. A partir daqui nunca mais parou (subiu ao Dhaulagiri em 2014 e ao Evereste em 2016), conciliando o hobby com o cargo que ocupa no Exército britânico.

Em maio de 2017, numa missão integrada num exercício das tropas especiais, voltou ao Evereste com o seu pelotão: "Não disse a ninguém que já o tinha feito, porque queria que eles celebrassem o momento e que fosse vivido pela primeira vez por todos." Quando o pelotão regressou a Katmandu, onde ia permanecer uma semana, Nims voltou ao Evereste: "Tenho uma fotografia no meu Instagram com a cara queimada pelo vento. Só havia quatro ou cinco alpinistas no cume. Foi uma escalada difícil", contou ao site da Red Bull.

Nesta terça-feira, um post no Instagram dava conta do fim da expedição com êxito. "Missão cumprida", podia ler-se na mensagem, seis meses e uma semana depois de ter dado início ao Project Possible, que muitos chegaram a pensar que seria impossível.

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