'Brrm! Brrm!' - Clive James (1939-2019)
Em circunstâncias normais, a terceira palavra no título de um obituário costuma explicar a razão de ser do obituário. Pessoa X morreu, e estamos a ser informados desse facto porque pessoa X era político, ou actor, ou futebolista. Quando a morte de Clive James foi anunciada nesta semana, a variedade de escolhas nos obituários foi uma homenagem acidental à polivalência renascentista da sua biografia: "Morreu o poeta e escritor Clive James", "Clive James, apresentador de TV, morre aos 80 anos", "Clive James, critic and broadcaster", "Clive James, autor e tradutor", "Clive James, australian celebrity", etc.
Muitos dos obituários, suspeita-se, já estavam escritos há algum tempo, não só porque a norma é essa, mas porque a morte teve um aviso prévio de quase uma década, tendo sido transformada na mesma exibição cómica em que Clive James transformava muitas das suas participações na vida pública. Diagnosticado com leucemia em 2010, deu várias entrevistas "terminais", depois várias entrevistas em que se referiu a essas entrevistas terminais como "o período póstumo da minha vida", e foi publicando poemas de despedida a intervalos regulares (a árvore que motivou um dos poemas, "ácer japonês", morreu antes dele).
O nome Clive foi talvez o seu primeiro acto criativo. Baptizado como Vivian James (em homenagem a um tenista australiano), o seu nome coincidiu com a estreia de E Tudo o Vento Levou, que fez de Vivien Leigh uma estrela global e tornou o nome "Vivian" (independentemente da grafia) inviável para rapazes que não queriam ser gozados na escola. Aos 10 anos, a mãe autorizou-o a escolher outro, e o jovem Vivian optou por Clive, nome de uma personagem interpretada por Tyrone Power num filme que vira no dia anterior. (O momento surgiu antes da escalada de erudição autodidacta, ou os obituários de hoje arriscar-se-iam a lamentar a morte de Werther James ou Empédocles James).
Parte de um grupo de autoexilados australianos (como Germaine Greer, o cómico Barry Humphreys e o crítico de arte Robert Hughes) que fizeram carreira em Inglaterra, Clive James optou por ter várias carreiras. Começou por escrever recensões e ensaios sobre literatura (para o TLS, Listener, New Statesman), tornou-se o crítico de televisão do Observer durante uma década (actividade que revolucionou), e transitou da página para o ecrã nos anos 80, com programas semanais no Channel 4 e na BBC, nos quais, anos antes de a internet vulgarizar esse tipo de intercâmbios culturais, apresentou o público ocidental ao exótico delírio dos concursos japoneses ou das cantoras de variedades cubanas (como Margarita Pracatan). Nos intervalos desta agenda atarefada, também arranjou tempo para traduzir Dante e para escrever cinco volumes autobiográficos (os dois primeiros, Unreliable Memoirs e Falling Towards England, são obras-primas cómicas) e quatro romances não muito bons, mas polvilhados com os prazeres esporádicos da sua prosa - um deles esplendidamente intitulado Brrm! Brrm!.
Embora nunca se tenha tornado, nas suas palavras, um "australiano profissional", a nacionalidade, ou pelo menos as circunstâncias da sua transferência para outra cultura, explica muito do seu apelo. Ao elogiar as virtudes da escrita "essencialmente australiana" do compatriota Robert Hughes, podia estar a falar da sua: "O produto de uma inocência expatriada, que desfrutou constantemente de cada patamar da sua crescente sofisticação sem nunca diminuir o bárbaro entusiasmo original." O seu mecanismo predilecto era a hipérbole multidisciplinar, em que extravagantes alusões culturais serviam de ornamentos cómicos ao seu próprio descaramento. No romance Brilliant Creatures, descreveu desta maneira uma cama demasiado grande: "Era suficientemente ampla para deitar todos os membros da família Bórgia, e ainda sobrava espaço para uma reconciliação de última hora com os Orsini." Também ensinou a uma geração inteira de pupilos devotos o truque de depositar uma frase no início da página para render juros cómicos mais tarde. Uma referência inócua a um "míssil balístico intercontinental" permite-lhe, parágrafos depois, descrever um decrépito vulto intelectual da Guerra Fria como "um fóssil balístico internacional".
Em 2007, publicou Cultural Amnesia, um calhamaço inclassificável de 800 páginas, que tanto em forma como em execução fornece uma síntese dos seus métodos e do seu apelo: serena e panóptica absorção dos materiais de base, e posterior conversão em retalhos de senso comum temperados com piadas. O livro é uma compilação informal de notas de leitura acumuladas ao longo de meio século, em que uma reflexão sobre Arthur Schnitzler e a ideia de responsabilidade moral em regimes ditatoriais pode resvalar para uma digressão de três páginas sobre o penteado de Richard Burton no filme Where Eagles Dare.
Embora as opiniões se possam dividir sobre esta conclusão, a parte mais típica e memorável da sua obra é o conjunto de críticas televisivas semanais que escreveu para o Observer (recolhidas em três volumes esgotados há anos, mas fáceis de encontrar em segunda mão, Visions Before Midnight, The Crystal Bucket e Glued to the Box). Foi nessa sequência acumulada que melhor praticou aquilo que, em teoria, aprendeu com Kenneth Tynan, e que, por sua vez, foi reproduzido, conscientemente ou não, por muitas pessoas que escreveram sobre cultura popular nos últimos 40 anos, de Martin Amis a Charlie Brooker: o hábito de escrever seriamente sobre objectos cómicos, e comicamente sobre objectos sérios (de citar Rilke para falar do Incrível Hulk - e vice-versa), não só pelo valor de entretenimento, mas porque uma fidelidade à ideia mais ampla de "cultura" tem de abarcar jóias e detritos.
Ao ler Shakespeare, Keats fazia notas nas margens sobre a qualidade daquilo a que chamava bye-writing: os momentos em que a escrita era boa quando não precisava de ser. Salvaguardadas as óbvias e devidas proporções, qualquer leitor de Clive James chega, mais tarde ou mais cedo, a uma conclusão semelhante, ao vasculhar os seus exemplares envelhecidos e descobrir a quantidade de sublinhados que preservam observações sobre debates políticos de 1976 ou concursos Miss Mundo que já nem sequer existem em cassete de vídeo, ou insultos gratuitos a celebridades semiesquecidas. Sobre os olhos de Barbara Cartland: "Dois milagres de maquilhagem que parecem os cadáveres de um par de corvos que se esborracharam contra uma falésia de calcário." Sobre o cabelo de Barry Manilow: "Um naperão bordado a partir de raspas de cenoura." Sobre o corpo de Arnold Schwarzenegger: "Como um preservativo castanho recheado com nozes." Não é Rilke nem Hulk, mas a obra do jovem Vivian merece o seu patamar próprio de permanência cultural: um pouco abaixo do cânone, um pouco acima de um ácer japonês.