A primazia do lateral
A prestação de contas do governo ao Parlamento, e por essa via ao país, tem como momento central o debate quinzenal. O formato tem falhas, presta-se a encenações, existe uma assimetria de informação, há ruído lateral, mas é o que temos - e o que temos é melhor do que nada. É preferível um debate nestes termos a não haver um qualquer momento formal e procedimental de prestação de contas, uma oportunidade de confrontar o governo.
Parte destas falhas é alimentada pela cobertura noticiosa, sempre à procura de um episódio paradoxal, de uma polémica, de um caso, quanto menos sofisticado ou complicado de explicar melhor. É sempre preferível, nessa ótica de cobertura, uma polémica acerca de comportamentos, atitudes, intrigas internas, do que uma polémica à volta de uma reforma, de uma proposta legislativa, de uma visão do país. E se é isso que a cobertura noticiosa procura, é natural que os partidos, sobretudo aqueles que precisam de se fazer notar, atuem em conformidade.
Na semana passada, tivemos um debate quinzenal em que foram discutidas questões tão atuais como o estado do nosso Serviço Nacional de Saúde ou a precariedade laboral. Basta ver a importância que os portugueses dão à saúde, bem como o crescente número de evidências de que o SNS não está a conseguir cumprir integralmente as suas funções, para se perceber a importância da matéria, para ser relevante saber o que têm o governo e a oposição a dizer sobre o assunto.
Mas disso não se fez a cobertura noticiosa do debate, presa que estava às polémicas no Livre: parecia que não tinha existido mais nada naquele dia, como se o panorama político se resumisse às questões internas do Livre.
Não está em causa que essa polémica possa ser matéria noticiosa, o que está em causa é a absoluta desproporção noticiosa que esta tomou, com os holofotes mediáticos em cima de uma deputada e à procura de mais uma polémica.
É verdade que Joacine Katar Moreira tem um discurso e posições com os quais não me identifico, com uma pessoalização que me desagrada e que já critiquei e continuarei a criticar - e fortemente. Mas nada disso surgiu agora. Aliás, muito disso, que agora aparece exibido como novidade ou surpresa, foi saudado como novos e bons ventos para a política portuguesa.
Dizem-me que a deputada se pôs de alguma forma a jeito, dizendo coisas ou tendo atitudes polémicas, e que isso justifica o destaque algo desproporcional: como não destacar os episódios quando eles se sucedem?
Acontece que qualquer um de nós, se tiver holofotes permanentemente em cima, ainda para mais se tiver pouca experiência política, não tardará em dizer ou fazer algo de polémico. É inevitável, e quem pensar que está a salvo disso, por talento ou sorte não percebeu ainda o mundo mediático em que vivemos. Tudo o que dizemos e fazemos pode, a um mesmo tempo, ser lido de forma bastante distinta consoante o vento. E se os holofotes não nos saírem de cima, é certinho que algum dia a coisa ocorre.
Entretanto, no meio disto tudo, poderíamos estar a discutir o SNS, mesmo com polémicas e casos, que também os há.
Advogado