Ordem e justiça internacionais

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O problema da ordem internacional não se confunde com o da justiça internacional, podendo talvez entender-se, simplificadamente, que o primeiro tem que ver com o "equilíbrio das potências", no sentido que utilizou Kissinger já neste século de outono ocidental (balance of power), enquanto o segundo implica uma cobertura jurídica que não tem que ver com a hierarquia das potências mas sim com a valia dos interesses e dos procedimentos.

A Carta da ONU não ignorou o primeiro sentido quando aristocratizou o Conselho de Segurança com o "direito de veto", mas deu primazia ao segundo ao instituir o Tribunal Internacional de Justiça, aprovando também uma Declaração Universal dos Direitos Humanos. A utopia foi a de conciliar os dois pontos de vista no sentido de construir uma "ordem internacional democrática". Os factos foram demonstrando a dificuldade de, para este efeito, organizar a estrutura de modo a conseguir a redução de conflitos de interesses e de poder, respeitando o direito expresso pela Carta e os seus corolários.

A caracterizante do século, que foi a Guerra Fria, fez sobretudo vigorar dois sistemas em permanente ameaça recíproca, sendo certo que o fim do sovietismo traduziu-se no débil recurso a acordos regionais, designadamente com a União Europeia em crise, e a crescentes novos desafios globais, que vão da possibilidade da cascata atómica ao desastre ambiental. Não podendo omitir-se que o dogma da ONU, segundo o qual "a terra é casa comum dos homens", está desafiado severamente, talvez comprovando o pessimismo que levou Ronald Syme a concluir que "em todas as épocas, seja qual for o nome dado ao seu regime, monarquia, república ou democracia, existe uma oligarquia à espreita por detrás das fachadas".

O Inter Action Council, a 1 de setembro de 1997, proclamando e pedindo a aprovação dos Estados, publicou uma Declaração Universal dos Deveres Humanos. Abonou a iniciativa declarando, sem êxito até hoje, que "a globalização da economia mundial tem uma correspondência nos problemas globais e os problemas globais precisam de soluções globais com base em ideias, valores e normas respeitadas por todas as culturas e sociedades". Uma melhor ordem social nacional e internacional não se consegue só com leis, recomendações e convenções, "é preciso que haja uma ética global".

O Ocidente, tendo a sua parcela mais antiga na Europa, embora responsável por inegáveis violências, conseguiu chegar a tal entendimento, parte do que hoje chamamos Património Imaterial Comum da Humanidade. Uma parte desse património posta gravemente em perigo, por exemplo inquietante, quando recentemente o presidente dos EUA considerou um excecional triunfo ter paralisado a ação do Tribunal Penal Internacional, o qual tornou público ter decidido não exercer a sua competência quanto à investigação de crimes de guerra, porque nenhum Estado consentira em dar a sua colaboração.

Um dos factos que agudizam a inquietante questão circulante sobre se a comunidade internacional é uma sociedade democrática. Pergunta que se tornou mais aguda com o abuso italiano (estamos na Europa) de assumir, no seu sistema jurídico, a incriminação do socorro e salvação de imigrantes que continuam a transformar o Mediterrâneo num cemitério, incluindo a incriminação do português Miguel Duarte, exemplo de humanista e praticante da ética que cresceu no europeísmo.

As ordens dos advogados, que não precisam de apoios ou concordâncias estaduais, estão legitimadas para se unirem e manifestar contra este desastre ético e jurídico. A violação da legalidade internacional, é conveniente repetir, inclui a violação dos princípios que orientam a chamada "justiça natural". É uma expressão que afirma valores que não dependem sequer de convenções internacionais, ou de leis positivas: é simplesmente justiça, isto é, conjunto de valores que são o suporte do que chamamos "direitos naturais", que vinculam os homens e os Estados independentemente de haver lei positiva ou convenção internacional.

Trata-se de uma noção frequentemente usada para assegurar a integridade do respeito que se deve à dignidade de todos os seres humanos. Neste caso do direito italiano, que incrimina e pune de maneira brutal o cumprimento do dever de auxiliar à salvação dos que estão em perigo, traduz-se em condenar à morte os abandonados se tal imperativo for obedecido. Acontece que o direito à vida e o dever de auxílio apoiam-se não apenas na Declaração Universal dos Direitos Humanos, mas também no Património Imaterial da Humanidade, a que o Estado italiano deve obediência. É por isso que o "poder da voz" das instituições vigilantes desse património as legitima para exigir o recuo da ilegítima "voz do poder".

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