As notícias em torno da exposição de Robert Mapplethorpe na Fundação de Serralves surgem contaminadas por um impulso moral que, nos nossos dias, se tornou uma espécie de vício mediático. Entenda-se: não discuto a importância dessas notícias e a pertinência do seu tratamento. E acrescento: também não pretendo, com estas breves linhas, contrapor qualquer visão redentora de tudo o que está em jogo..Em boa verdade, a delicadeza do assunto leva-me a assumir uma distância. Não sei quem tem razão nem conheço todas as nuances da questão. Aceito, sem drama, que a todos os envolvidos assistem razões (no plural) que justificam atenção crítica e disponibilidade mental..Seja como for, registo o citado impulso. A saber: há imagens que, desde que envolvam componentes sexuais mais ou menos evidentes, imediatamente suscitam alguma agitação social (incluindo a que se exprime, de forma brusca e irresponsável, nas chamadas redes sociais). Como se fosse necessário e, mais do que isso, compulsivo redefinir todas as nossas práticas democráticas "apenas" porque reconhecemos que estamos a ver algo que envolve elementos de natureza sexual..Dizer que as fotografias de Mapplethorpe são cândidas e inócuas seria absurdo. O certo é que, extrapolando para o polo oposto (que, aliás, neste caso, ninguém enunciou), não seria menos absurdo classificá-las como objetos grosseiros que devam ser evitados..O que eu penso sobre os trabalhos fotográficos de Mapplethorpe é apenas um detalhe: parece-me ser um dos nomes fulcrais da arte americana da segunda metade do século XX, a par, por exemplo, de Patti Smith, que sobre ele escreveu esse livro maravilhoso que é Apenas Miúdos (ed. Quetzal, 2011). O certo é que, socialmente, os ecos da atual situação "empurram-me" para voltar a lidar com as imagens de Mapplethorpe unicamente através da problematização da sua exposição pública e respetiva logística. E, para mim, como leitor/espectador dessas imagens, isso tende a menorizar a minha relação com elas. Atrevo-me a pensar que o mesmo se passará com a relação dos outros..Volto, assim, a reconhecer que vivo num país em que Mapplethorpe provoca esta agitação pública, enquanto se passam anos e anos sem que quem quer que seja - a começar pelos elementos da classe política, direitas e esquerdas confundidas - pronuncie uma ténue palavra sobre a violência moral das representações quotidianas da sexualidade nos programas de reality TV (mais ou menos derivados do Big Brother)..Bem sei que relembrar isto tende a atrair um outro impulso (muito popular nos domínios sociais e virtuais), redutível a uma pergunta seca: "Queres, então, que se proíba a reality TV?" Permito-me, por isso, repetir: não se trata de clamar por qualquer lógica de interdição, mas de tentar lidar com o nosso silêncio social face a modos de representação das relações humanas que, entre outras coisas, reduzem a sexualidade a estúpidas performances genitais, nessa medida ridicularizando e, no limite, mascarando a riqueza, complexidade e beleza dos afetos..Não me reconheço, por isso, nos rótulos que definem a importância de Mapplethorpe (ou, no polo oposto, a sua falta de importância) através daquilo que seria a sua capacidade de "provocação". Encaro mesmo essa palavra como um gadget pueril, já que a encontro regularmente aplicada, com o mesmo automatismo, a Mapplethorpe ou a uma vedeta de telenovelas que decide mostrar alguns centímetros de pele nua..Do meu ponto de vista (certamente discutível, porque individual, não universal), considero que a energia afirmativa do trabalho fotográfico de Mapplethorpe não exclui, antes dá a ver, o medo que habita o nosso entendimento da sexualidade (leia-se: a própria vida sexual)..E talvez seja a partir daí que podemos refletir sobre um dos enigmas do nosso liberalismo: face a Mapplethorpe, hesitamos, especulamos, discutimos exposição e ocultação; ao mesmo tempo, resignamo-nos com o facto de a reality TV e toda a sua desumanização (muito para além da sexualidade) se ter instalado na rotina do dia-a-dia. Esta nossa indiferença define muito do que somos, do que pensamos e, sobretudo, do que não queremos pensar.