Um século de falta de censos
O INE decidiu não perguntar sobre a identificação étnica no Censos de 2021 mas há muito pergunta sobre identificação religiosa - outra categoria sensível. E em termos que deixam muito a desejar num organismo alegadamente tão preocupado com discriminação.
É interessante constatar que o Instituto Nacional de Estatística decidiu chumbar a pergunta sobre pertença étnica dos inquiridos no Censos 2021 mas nunca parece ter tido qualquer problema em perguntar sobre a pertença religiosa - uma categoria igualmente sensível do ponto de vista dos preceitos constitucionais que impedem a discriminação.
O objetivo da pergunta sobre religião, afirma-se no site do Censos 2021, é "retratar a população residente em termos de padrão religioso". Como todas as outras perguntas que permitam não só tentar entender as características da população como aferir das mudanças que nelas se operam, a sobre a pertença religiosa, ou inexistência dela, permite informação interessante e importante.
Uma informação que não permite mais conclusões que não a da forma como as pessoas se autoclassificam - o que para esta categoria não parece constituir um problema para o INE, enquanto no caso da pertença étnica lhe suscitou questões sobre "como identificar a discriminação" (o que nunca foi, e dificilmente poderia ser, o objetivo de uma tal pergunta no Censos). Assinalemos pois que se para o INE fazer o retrato da população em termos de padrão religioso é importante - e é-o desde 1900, quando a pergunta foi pela primeira vez efetuada - retratá-la em termos de padrão étnico não chega como objetivo.
Admitamos que perguntar sobre pertença étnica é particularmente complicado; implica grandes precauções, e a coleta dessa informação pode ter efeitos perversos. Mas a coleta da informação sobre pertença religiosa também implica cuidados e também se presta a utilizações perversas.
Enquanto os inquéritos sobre religião começam por perguntar às pessoas se têm uma, o censos 2021 pergunta qual a religião. O não religioso que não desista logo de responder a algo que à partida o exclui tem de ler uma lista de oito opções para encontrar a sua: "sem religião".
É pois preciso dizer que a forma como o INE estrutura a pergunta sobre religião deixa muito a desejar quanto à neutralidade e mesmo ao rigor técnico. Desde logo, pela epígrafe: "Indique qual é a sua religião". Temos pois que um inquérito nacional assume que o inquirido tem uma religião? Não é evidente que esta epígrafe poderá levar pessoas sem religião a nem sequer responder à pergunta? E que a forma neutra e única aceitável seria algo como "Qual a sua posição/situação face à religião" - como sucede por exemplo como a "situação na profissão" -, ou, usando a pergunta de um inquérito de 2016 sobre religiosidade de jovens na Europa, "Vê-se como pertencendo a uma religião ou denominação religiosa?"
Pelos vistos não. Aliás parece ser tão pouco evidente para os técnicos e decisores do INE que a resposta "sem religião" é a última opção em oito quando, evidentemente, deveria ser a primeira: a pessoa sem religião não pode ter de procurar numa lista de denominações religiosas até encontrar o campo em que se inscreve; deve poder assinalar a sua não pertença religiosa logo à cabeça. É como se um sem-abrigo fosse confrontado com a epígrafe "qual o seu tipo de habitação" para só no fim de uma lista de tipologias encontrar "não tenho habitação", ou um desempregado com "qual o seu tipo de trabalho" e só no fim da lista "não tenho trabalho". Sentido nenhum, obviamente.
Mas não fica por aqui: as outras opções, que de acordo com o site do Censos 2021 permanecem iguais às do de 2011, são, por esta ordem: "Católica"; "Ortodoxa"; "Protestante"; "Outra Cristã"; "Judaica"; "Muçulmana"; "Outra não cristã". Note-se que, numa pergunta opcional, que supostamente visa perceber o padrão da autoidentificação das pessoas em termos religiosos, não existe um campo para "outra" que permita alternativa às que estão listadas (por exemplo hindu ou budista, que não constam da lista, sem que se perceba porquê, e que terão de se inscrever em "outra não cristã"). Do mesmo modo - e ao contrário do que sucedeu por exemplo num inquérito da Universidade Católica em 2012, não existe a opção "crente sem religião" (que nesse inquérito correspondia a 4,6% das respostas).
De resto, é difícil perceber que critério presidiu à listagem e ordenação das opções. Porque é que, por exemplo, existe a opção "ortodoxa", que se refere aos cristãos ortodoxos, e não a opção "evangélica", quando é sabido que parte substancial dos evangélicos não se identificam como protestantes? Basta aliás olhar para o resultado do Censos de 2011 para perceber como tal é incompreensível: se 75 571 dos inquiridos se identificaram como protestantes, mais do dobro assinalaram o campo "outra cristã": 163 338. É espantoso como o INE acha que não interessa para nada saber como se identificam estas pessoas, que são o grupo mais numeroso entre os cristãos não católicos. Do mesmo modo, o número de pessoas que em 2011 puseram a cruz em "outra não cristã", 28 596, são mais que os muçulmanos (20 640) e judeus (3061) somados.
A secção do Censos 2021 sobre religião é quase decalcada da de 1900. Em 119 anos, nos quais o país passou da situação de reino com religião oficial para república democrática laica, os responsáveis pela coleta de informação não viram motivos para alterar a lista e a forma de questionamento.
A ideia do INE será mesmo "retratar a população em termos de padrão religioso"? É que não parece nada. Aliás, fosse esse o caso, e à luz do que se sabe de inquéritos específicos sobre religião, dos quais se retira que existe uma grande preponderância de identificação cultural, revelada na enorme diferença entre o número dos que em países como Portugal, Espanha e França se identificam como católicos e os que efetivamente praticam a religião - no inquérito da Universidade Católica citado, dos respondentes identificados como católicos, apenas 17,2% tinham ido à missa no último fim de semana; no inquérito europeu referido, são 53% os jovens portugueses que se identificam como católicos, mas só 20%, e de todos os respondentes (incluindo não católicos), afirmaram frequentar um serviço religioso uma ou mais vezes por semana, sendo 23% os que disseram orar semanalmente ou mais -, deveria existir a opção "cristã", antes de qualquer outro subgrupo (católico, ortodoxo, protestante, evangélico). Tal permitiria perceber se num país como Portugal a identificação cultural é predominantemente cristã ou católica, e quantos dos que se identificam como cristãos não se inscrevem em nenhuma das organizações cristãs.
Aqui chegados, não será grande surpresa descobrir que a secção do Censos 2021 sobre religião é quase decalcada da de 1900, quando a lista de opções continha as categorias "católicos, protestantes, ortodoxos, israelitas, maometanos e sem religião". Em 119 anos, nos quais o país passou da situação de reino com religião oficial, que discriminava duramente as outras, para república democrática laica, os responsáveis pela coleta de informação não viram motivos para alterar a lista e a forma de questionamento. É capaz de estar tudo dito.