Maria de Belém Roseira: "Abolir taxas moderadoras terá de ser opção política"
Há um ano, aquele que foi considerado o pai do Serviço Nacional de Saúde (SNS) e fundador do PS, António Arnaut, veio a público pedir uma nova Lei de Bases da Saúde. O argumento era o de que a atual, de 1979, já não serve. Nesta causa esteve com ele outro homem de esquerda, João Semedo. Os dois publicaram o livro Salvar o SNS. O tema tem agitado as agendas da saúde e da política. E o governo, no início do ano, acabou por criar uma comissão, formada por técnicos de várias áreas, à qual atribuiu a missão de pensar e elaborar uma nova lei de bases. A data para a discussão desta foi definida por António Costa: setembro. Mas em junho a comissão apresentou uma pré-proposta, que esteve em discussão pública até dia 19. Aqui ficam algumas ideias sobre o que pode ou não ser feito por esta comissão
A pré-proposta apresentada pela comissão que lidera diz que as taxas moderadoras devem ter um limite a pagar por prestação e por ano. Mas há quem defenda a abolição das taxas. Será possível?
Abolir pura e simplesmente não, porque não está de acordo com a Constituição. Do ponto de vista político é que se pode discutir vários modelos, mas nós não somos um grupo político. Somos uma comissão independente, que considerou que tinha de respeitar o que está dito constitucionalmente, e não só o que está na Constituição, mas também o que é jurisprudência do Tribunal Constitucional. É preciso perceber que esta comissão não tem competências legislativas nem políticas. O nosso mandato vai no sentido de apresentarmos uma proposta ao governo.
O fim das parcerias público-privadas (PPP), pedido por muitos, também não consta da vossa proposta.
Também é uma questão de opção política. Ou se faz ou não se faz. Não é uma competência do nosso mandato, não somos um grupo político. Só usámos o que considerámos tecnicamente correto.
Até onde pode ir esta comissão?
Até onde já foi. Esta comissão fez uma leitura mais alargada da Constituição no sentido de reforçar a importância da centralidade das pessoas no SNS. Por exemplo, olhar para o SNS como um corretor de desigualdades que tem de ajudar o Estado numa das suas tarefas fundamentais, que é precisamente a proteção da saúde e o acesso a ela. Se há um SNS é porque há pessoas que têm de ser cuidadas. Neste sentido, esta comissão fez questão de introduzir na proposta que apresentou aquilo a que chamou "determinantes da saúde", e que são essenciais para o estado geral da saúde de cada um e que na atual lei só estão referidas de forma muito ligeira.
Fala da responsabilidade de cada cidadão na promoção da saúde?
Falo da responsabilidade que outras áreas governamentais também têm na avaliação da saúde e no seu impacto.
Pode dar exemplos?
A pobreza. Está fundamentado e há muitos estudos internacionais - como um que foi publicado na revista Lancet, no ano passado, e que envolveu um milhão e seiscentas mil pessoas, que revelou que a pobreza é uma das determinantes mais fortes do nosso estado de saúde. Aliás, a sua importância foi mesmo considerada muito superior ao risco cardiovascular ou à obesidade. Portanto, é fundamental que haja políticas concertadas de vários ministérios num programa de luta contra a pobreza. É fundamental que olhem para esta questão como uma determinante importante para o estado de saúde das pessoas.
Mas há outras...
A habitação, por exemplo. Sabemos e está provado que habitações insalubres são inimigas de uma boa saúde. Mas também podemos falar da alimentação. Por exemplo, até agora temos tido no SNS programas dirigidos à qualidade da prescrição para evitar resistências bacterianas aos antibióticos, mas é preciso perceber que estes programas têm de envolver uma parceria muito forte com a agricultura, porque os animais também tomam antibióticos e nenhum programa de resistência bacteriana terá resultados se não houver uma intervenção articulada neste domínio. É preciso termos esta perspetiva. O ambiente no trabalho e a precariedade laboral também são um dos fatores de maior risco para a saúde das pessoas. Isto também tem de ser avaliado. É claro que quem tem mais motivação e sensibilidade para fazer essa avaliação é o Ministério da Saúde, mas há que fazer parcerias com outros ministérios para se definirem políticas setoriais concertadas que tenham em conta o impacto geral.
Desse ponto de vista, a proposta que agora apresentam é mais abrangente do que a atual?
É, e mais explícita também. A lei atual fala num sistema de saúde, considerando que esse é apenas o SNS e as entidades com que tem acordos. Mas a intervenção em saúde tem de ter uma regulação muito forte porque compromete a vida das pessoas. Portanto, considerámos que os requisitos necessários à prestação de cuidados de saúde têm de estar muito bem regulamentados. E neste domínio houve necessidade de maior precisão de conceitos. O que também é importante.
Refere-se à prestação de cuidados por parte dos setores privado e social?
Esses estão garantidos na Constituição, que estabelece o direito à livre iniciativa privada. É evidente que pode haver prestação de cuidados do setor privado a utentes do serviço público. Mas a questão que se colocou a esta comissão foi a de termos de ser mais precisos e cuidadosos no estabelecimento de regras de transparência e de boa governança, de forma a garantir que os recursos públicos estão a ser bem canalizados. Ou seja, deixar definido que este com a garantia de que respeitam as exigências do serviço público.
E a questão das PPP?
Ter uma PPP a gerir uma unidade do Estado depende do partido que estiver no governo e não da alteração de uma Lei de Bases da Saúde, do governo e da Assembleia da República se o aprovar. Esta comissão não pode apresentar uma proposta a restringir a relação com as PPP, senão estávamos a apresentar uma proposta inconstitucional. Se fizéssemos uma proposta a proibir este tipo de relação era capaz de não passar no Tribunal Constitucional. Não podemos impedir é que um governo faça essa proposta e que a Assembleia da República a aprove. Cada um de nós, membros da comissão, até pode desejar determinada coisa, mas não pode impedir os mecanismos democráticos que existem para a aprovação do programa de um governo.
Então o que pode impor?
O que podemos impor é que qualquer despesa pública seja feita dentro de determinadas regras, até porque estamos a lidar com o dinheiro que é solicitado aos cidadãos. Portanto, a prestação de contas e a sua transparência são fundamentais.
E quanto ao financiamento público e à sua centralidade no SNS?
A lei de bases atual diz logo no início que o SNS é o instrumento do Estado para o exercício à proteção da saúde. Na nossa proposta, não nos pronunciamos sobre o financiamento privado, pois achamos que uma lei de bases não o pode fazer, isso decorre da iniciativa privada. Mas falamos de financiamento público, e propomos um aumento. Tem de haver um aumento. Damos, inclusive, a média europeia como referência. E defendemos este acréscimo no financiamento para que possa acontecer aquilo que de diferente propomos. Por exemplo, que esse acréscimo seja aplicado no conhecimento e no mérito dos profissionais, na inovação, nas tecnologias de informação, etc.
Há grupos que manifestaram publicamente a necessidade de a nova lei incluir uma nova organização do SNS. Vai ser possível?
A nossa proposta incide mais em planos locais de saúde. A questão da organização é competência do estatuto do SNS, não é de uma lei de bases. Isso é, mais uma vez, competência reservada dos governos. O que incluímos são medidas que permitam chegar mais perto das pessoas e das suas necessidades. O país não é uniforme. O concelho de Odemira não tem os mesmos indicadores nem as mesmas necessidades de Macedo de Cavaleiros. Portanto, apostamos em planos nacionais de saúde em articulação com as câmaras municipais, que são o nível de poder mais próximo das populações.
Terminou o prazo para discussão pública desta pré-proposta, quais são os passos que se seguem?
Antes de mais, devo dizer que recebemos muitos contributos. Tanto institucionais como individuais, o que significa que o tema suscitou grande interesse e que os cidadãos quiseram contribuir para a valorização desta lei. Os passos seguintes vão levar-nos a avaliar todas as propostas que chegaram e a ver o que é possível incluir para apresentar a proposta final ao governo em setembro. É o governo que irá analisar a nossa proposta e decidir se a altera. Esta comissão teve a preocupação de fazer uma leitura transversal da Constituição e de ouvir muitas pessoas para elaborar esta proposta.