Até que a igualdade finalmente nos una
É um facto irrefutável que a mulher, ao longo da história da humanidade, tem sido vítima de uma teia de discursos filosóficos, religiosos e políticos que visou legitimar e universalizar a sua inferioridade. Os códigos, as leis e as normas de conduta redutores da mulher a que esses discursos deram origem acabaram por perpetuar-se no tempo, na arte, na educação e noutras matrizes de identidade colectiva. A vontade, a coragem e a determinação de vários protagonistas (muitas vezes anónimos) levaram a que a discriminação tenha vindo a ser questionada e destronada, reescrevendo o papel da pobre Pandora na origem dos males do mundo. Os vários movimentos de libertação feminina, com a sua reivindicação pela igualdade de género, têm levado à revisão de molduras legais, permitindo conferir mais dignidade às mulheres.
Passaram cem anos da promulgação do decreto-lei n.º 4676 que, pelas mãos de Sidónio Pais, permitiu o acesso a cargos públicos às mulheres. As mesmas mãos que continuaram a vetar-lhe o direito ao voto, batalha posteriormente vencida. Ao longo do século XX, a legislação foi evoluindo lentamente. Tão lentamente que, até 1962, na administração local, na carreira diplomática, na magistratura judicial, no Ministério das Obras Públicas, não havia mulheres. Como pode uma lei mudar uma cultura? Por si só, talvez não. Mas é a legitimação da mudança de paradigma e o reconhecimento de que algo deve mudar. É essa a sua força - a de reconhecer que se iniciou um caminho legítimo.
Os dados disponibilizados pela CITE - Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego, relativos a Portugal, ensombram o optimismo. A nível de desigualdade salarial (sem nenhum desejo de esmiuçar números), as mulheres contabilizam 60 dias não remunerados, por comparação com os homens. Para quantas pessoas este facto será uma surpresa? Calculo que para muitas. Este é precisamente um dos problemas que enfrentamos actualmente no que toca a estas questões - o perigo da percepção instalada. Há a percepção de que a mulher já conquistou tudo. Há a percepção de que a mulher já pode tudo, que já tudo é franqueado à mulher e que a esta só resta, ironicamente, ser a primeira a sair por último do elevador...
Quase como que uma evolução do preconceito, é esta percepção instalada de que tudo está bem, que dá origem aos argumentos dos que são contra a "ditadura do politicamente correcto", que atacam as "minorias barulhentas", por sua vez rotuladas de "minorias em tudo, menos em direitos". É um facto que, enquanto na Europa se discute a desigualdade salarial, noutras partes do globo discute-se ainda o acesso da mesma a um salário, mesmo que magro. Mas isso não deve nunca ser argumento para a estagnação. É necessário questionar esta e outras percepções instaladas. Por vezes, até questões complexas como a questão do masculino genérico na língua portuguesa. Será reflectir sobre isso um exagero ou, pelo contrário, um imperativo? É debatermos isso.
A reflexão deve ser para a sociedade como a evolução é para o mundo - constante. A própria noção de género está em permanente (r)evolução. A revolução tecnológica e social juntou à dimensão binária da esfera pública e da esfera privada a dimensão da esfera global. Um óptimo exemplo é a robô Sophia que conhecemos na Web Summit. Porquê dar-lhe um rosto inspirado na Audrey Hepburn? Ou porque não? Que contornos de género transmite a Sophia à sociedade?
Considero que é através do debate e de outras iniciativas de cariz formativo que se pode ajudar uma lei a mudar uma cultura.
Há um ano deu-se um passo importantíssimo na direcção da paridade laboral em Portugal, ao ser aprovada uma lei que obrigava a quotas mínimas do género menos representado nos conselhos de administração e nos órgãos de fiscalização das empresas - das públicas e das cotadas em bolsa. Neste ano, também aprovámos, a 18 de Julho, a lei que define medidas de promoção da igualdade salarial entre mulheres e homens por trabalho igual ou de igual valor. E ainda a coronel Regina Mateus, que tomou posse como directora do Hospital das Forças Armadas, tornando-se a primeira mulher a assumir um cargo de oficial general nas Forças Armadas. Tudo isto é apenas parte de um caminho. Para onde e até quando? Até ao fim da história da humanidade ou, simplesmente, até que a igualdade finalmente nos una.
Escreve de acordo com a antiga ortografia