Santinho: alguns espirros imaginários
Os leitores do Diário de Notícias que compraram esta edição em formato físico estão a usar as suas mãos para tocar em papel que já foi tocado por muitas mãos diferentes, tendo usado dinheiro que foi tocado ainda mais vezes. Os que lerem este texto online estão provavelmente a usar periféricos de ecrã táctil, todos esborratados com impressões digitais suadas e perdigotos avulsos. Alguns de vocês, a meio de um scroll, levaram inconscientemente a mão ao rosto, fazendo essa matéria repugnante circular mais um bocadinho. É provável que alguém espirre enquanto lê este texto.
Não há muito que as transmissões permanentes dos canais noticiosos consigam fazer com este catálogo de signos invisíveis, razão pela qual a cobertura televisiva do covid-19 tem ilustrado a sua missão primária - procurar um ponto de equilíbrio entre alarmismo entusiasmado e pedagogia resignada - com imagens de arquivo (pessoas com máscaras), improvisos surreais (directos de um repórter a comentar pombos em Milão) ou constante actualização numérica de casos suspeitos e testes negativos.
A dramatização ficcional de pandemias tem mais recursos ao seu dispor, mas não deixa de enfrentar dificuldades intrínsecas. A maioria dos filmes sobre o fim do mundo acabam quase sempre por resvalar para uma montagem de efeitos especiais em tons cinzentos (nevões, ondas gigantes) ou alaranjados (explosões nucleares) que conspiram para dificultar a comovente reunião do protagonista com a sua família - um dos mais ousados, The Day After Tomorrow (2004), mostra o protagonista a derrotar triunfantemente uma frente polar correndo muito depressa para dentro de uma biblioteca e trancando as portas de madeira. Com pandemias, o adversário é ainda menos visível e mais difuso: a possibilidade estatística de que o espirro ouvido no elevador (ou na cafetaria, ou na carruagem do comboio) seja a sétima trombeta do Apocalipse.
O primeiro filme registado e protegido por direitos de autor intitula-se Edison Kinetoscopic Record of a Sneeze. Dura quatro segundos, demorou cinco dias a filmar (em janeiro de 1894) e mostra o Sr. Fred Ott, empregado num dos laboratórios de Thomas Edison, a espirrar depois de inalar uma pitada de rapé. Desde então, só costuma haver três motivos para uma pessoa espirrar no grande ou pequeno ecrã: 1) interromper comicamente uma discussão séria; 2) chamar inadvertidamente a atenção de quem se está a esconder; ou 3) anunciar o fim do mundo, tornando o espirro uma sinédoque para o início de uma cadeia de transmissão.
Contágio (2011), de Soderbergh, optou por uma abordagem musculada à paranóia das superfícies: o filme (que começa com alguém a tossir em vez de espirrar) é uma longa sequência de close-ups de maçanetas, tampas, mesas e portas de vidro, todas elas tocadas recentemente por uma personagem, e prestes a serem tocadas por outra. É uma espécie de educação à martelada, e funciona tão bem que, chegados ao último terço do filme, o espectador se arrisca a dar gritos exasperados sempre que um actor em segundo plano leva a mão à testa para afastar uma farripa de cabelo.
Cada geração tem provavelmente a sua pandemia fictícia predilecta, mas qualquer cânone do espirro letal tem obrigação de incluir The Stand (1978), o livro mais popular de Stephen King (um dos poucos que misteriosamente nunca foram traduzidos em Portugal), e cujos adeptos desatam a relê-lo ritualmente sempre que a palavra "vírus" abre noticiários mais de três dias consecutivos. Em vez de uma vaga contingência biológica, King elege como origem um duplo e catastrófico erro humano: uma versão "melhorada" do vírus da gripe cozinhada em laboratório pelo Exército dos Estados Unidos, e o sistema de segurança defeituoso de uma instalação secreta no deserto do Mojave, cujos portões se fecham com 15 segundos de atraso, permitindo a fuga de um funcionário apavorado e o consequente contágio global, que elimina 99,4% da população do planeta. Na segunda metade do romance, o registo muda do prático para o místico. Os poucos sobreviventes, unidos apenas pela sua misteriosa imunidade e por sonhos proféticos, começam a gravitar na direcção de dois pólos aglutinadores: Boulder, no Colorado, atrai os penitentes e os idealistas (e os sociólogos); Las Vegas atrai um elenco aleatório de tecnocratas, marginais e preteridos, respondendo ao apelo de uma figura satânica chamada Randall Flagg, que denuncia o seu estatuto de vilão através de uma ambiciosa colecção de coletes de ganga.
Mas é no ritmo febril das suas primeiras trezentas e tal páginas que The Stand atinge um pico optimizado de fluência hipnótica que a maioria da ficção - comercial ou literária - raramente conseguiu alcançar. A estrutura vai intercalando habilmente três tipos de capítulos: panorâmicas ao estilo Dos Passos (documentando as primeiras tentativas de gestão de danos, o fracasso sucessivo de vários sistemas e protocolos, progredindo para actos de supressão e censura, até ao completo colapso institucional); vinhetas sobre pequenas tragédias pessoais (os esforços, psíquicos e logísticos, de uma filha para enterrar o cadáver do pai no seu jardim preferido); e as sequências essencialmente visuais que o género exige, mostrando paisagens esvaziadas e reclamadas pela natureza (há 20 páginas fabulosas sobre uma Manhattan estival, permeada com o cheiro de cadáveres em decomposição, as ruas repletas de animais fugidos do jardim zoológico local).
Uma minissérie de dez episódios vai estrear-se em 2020, 26 anos depois da primeira adaptação (também no pequeno ecrã). O The Stand televisivo de 1994 é uma relíquia pirosa de uma década de 90 ainda na ressaca da década anterior, desde o elenco (Rob Lowe e Molly Ringwald!) ao vestuário (uma pandemia de ganga e cabedal), e inclui uma indesculpável colecção de maus espirros, que se substituem aos capítulos panorâmicos do livro. Um deles, em tom puramente jornalístico, vai relatando a correia de transmissão do vírus em parágrafos lacónicos: um polícia de trânsito que contamina as várias pessoas que multou, uma delas um vendedor de seguros que contamina vários clientes, um desses clientes contamina o balcão do café onde tomou o pequeno-almoço, e assim sucessivamente.
Stephen King escreve "livros de terror" mais ou menos por exclusão de hipóteses, embora pareça lá ter chegado naturalmente. Ao escrever sobre paranóia política, ou sobre a tensão entre tecnofilia e tecnofobia, acaba por imaginar uma história de vampiros (Salem"s Lot, 1975) ou uma invasão de extraterrestres mortos (The Tommyknockers, 1987). The Stand cavalga dois subgéneros distintos, a ficção pré e pós-apocalíptica, mas também dramatiza as mesmas incompatibilidades fundamentais que sempre contestaram ideologicamente a psique americana: uma separação retórica e administrativa do espiritual e do secular que a prática cívica e política torna inviável; e a construção de protocolos que exaltam a governação colectiva e um destino comum, ao mesmo tempo que alimentam desejos atávicos de um individualismo isolacionista e radical.
Quase todas as histórias sobre pandemias são também sobre o receio do contacto e da proximidade. Nas últimas páginas do livro, depois do desenlace sacrificial, um dos protagonistas sobreviventes manifesta o desejo de exílio. Mesmo depois de um cataclismo que reduziu a população a dois ou três milhões de pessoas, e num mundo onde ninguém espirra há mais de 600 páginas, ainda sente o impulso de estender a Fronteira, de procurar uma liberdade que se mede pela distância de todas as outras liberdades, e que nunca tem espaço suficiente.
Escreve de acordo com a antiga ortografia