Sai o real irreal, entra o irreal irreal

O motivo pelo qual, se eu contar pelos dedos quantas vezes fui ao cinema nos últimos 20 ou 30 anos, sobrarão dedos.
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Quando leio os números hoje atingidos pelo cinema - filmes que se estreiam em 2000 cinemas ao mesmo tempo, chegam às telas mais remotas em questão de semanas e sua bilheteira se mede em biliões de dólares -, mais me convenço de que Hollywood pode passar sem mim. Nos últimos 20 ou 30 anos, se contar nos dedos quantas vezes fui ao cinema, sobrarão dedos. E a indústria de pipocas, da qual o cinema parece ter se tornado uma extensão, também não se abalará pela perda de um cliente. É verdade que, quando ainda ia ao cinema todos os dias, já era raro eu comprar pipocas, achava impossível assistir a filmes como Este Obscuro Objeto do Desejo (1977), de Buñuel, ou a Intimidade (1978), de Woody Allen, e mastigar ao mesmo tempo.

Há vários motivos pelos quais os mais ardentes cinéfilos do passado, como eu, se afastaram do cinema: a chuva de anúncios comerciais antes do filme, o som a um volume intolerável e a profusão de filmes infantojuvenis, feitos apenas para gerar continuações ou vender brinquedos. Quanto a mim, o que realmente me perturba é não saber se o que estou vendo na tela aconteceu de verdade diante das câmaras ou se é um efeito artificial gerado em computador e sem a participação de humanos, exceto no controlo do mouse.

O cinema sempre foi ilusão, mas, até certa época, mesmo a ilusão tinha de ser real para parecer... real. A sequência da fuga de Clark Gable e Vivien Leigh durante o incêndio de Atlanta em E Tudo o Vento Levou (1939), por exemplo, era composta de três sequências diferentes superpostas na sala de montagem. Mas, efetivamente, algo teve de arder para caracterizar o incêndio da cidade - e, no caso, foi a gigantesca paliçada da aldeia indígena em King Kong (1933), que o produtor David Selznick comprou da RKO e mandou incendiar. A "chuva" de Serenata à Chuva (1952) era de mentira, claro, mas a água que caiu do teto do estúdio era de verdade - e foram tantas as repetições e as horas de filmagem que ninguém tomou banho em Hollywood naquele dia. E havia as providências concretas que os cineastas precisavam tomar se quisessem que determinada cena saísse ao seu jeito.

No clássico western Shane (1953), o diretor George Stevens discordou do curso de um riacho que atravessava aquele vale que Alan Ladd, no papel do suave pistoleiro Shane, protegia dos vilões. Stevens não teve dúvida: com a autorização dos poderosos locais, alterou o curso do riacho a poder de dinamite. Em O Tesouro de África (1954), John Huston também não aprovou o piso de azulejos multicentenários do saguão do Hotel Palumbo, em Ravello, por onde circulavam Humphrey Bogart e Jennifer Jones. Pois, com o OK do proprietário, Huston arrancou os preciosos azulejos e substituiu-os por vulgares lajotas, mais do seu agrado. E elas estão lá até hoje. O mesmo aconteceu em Blow-Up - História de Um Fotógrafo (1966), de Michelangelo Antonioni, filmado em Londres. O exigente Antonioni achou que o verde da relva do Hyde Park, onde se passa a sequência crucial do filme, não era tão verde quanto ele gostaria. Os ingleses, ao ouvir isso, ficaram indignados - como podia um cineasta italiano criticar o verde de um relvado inglês? Por acaso eles, os ingleses, não cultivavam os relvados mais perfeitos da Europa desde que tinham deixado de comê-los? Mas Antonioni, então poderosíssimo, não quis conversa: mandou pintar o gramado do verde que queria e só então filmou.

Em Cinco Anos Depois (1960), Marlon Brando, estreando como diretor e com carta-branca da Paramount para gastar quanto precisasse, estava filmando no Vale da Morte, um deserto na Califórnia. De repente, veio uma violenta e imprevista tempestade de areia. Marlon gostou da tempestade e resolveu incorporá-la à cena. E, enquanto teve luz, continuou filmando, com os atores, figurantes, técnicos e ele próprio engolindo golfadas de areia. A chegada da noite obrigou-o a interromper a filmagem e continuá-la na manhã seguinte. Só que, de manhã, ao voltarem para a locação, a tempestade de areia havia passado. O que fazer? Perder o que já tinham filmado e começar tudo de novo sem ela? Ou recriá-la artificialmente? Brando optou pela segunda hipótese: mandou trazer da Paramount, em Hollywood, uma gigantesca máquina de vento e, com todo o mundo jogando pás de areia na direção do vento, criou sua própria tempestade - e concluiu a sequência.

O que quero dizer é que, no passado, mesmo que se conseguisse simular certos efeitos em laboratório, algo tinha de ser produzido materialmente. Hoje, o computador cuida de tudo: cria tempestades de areia, corrige o verde de um relvado, altera o curso de um rio e com, no máximo, 500 figurantes multiplica-os à vontade e cria uma sequência de batalha que parece ter 5000 soldados. Já os milhares de pessoas em cena em filmes como Os 10 Mandamentos (1956), de Cecil B. DeMille, ou Ben-Hur (1960), de William Wyler, existiam - todos contratados, recebendo salários de cinco dólares por dia e tendo de ser instruídos, alimentados e vestidos com as roupas de cena.

Diz a lenda que, numa sequência de multidão de um de seus mamutianos superespetáculos, DeMille, empoleirado no alto de uma plataforma e de megafone em punho, deu a ordem: "Vamos filmar! Ninguém olhe para a câmara! Ação!!!" Trinta segundos depois, berrou para a equipa: "Parem tudo! Parem tudo!! Aquele maldito soldado de penacho verde olhou para a câmara!!!" "Qual?", perguntaram todos - havia 2000 soldados de penacho verde. DeMille apontou para um deles no meio de um grupo enorme: "Aquele!!" E mandou levarem o take para revelação. Quinze minutos depois, o técnico voltou com uma foto da cena. O pobre rapaz estava, de facto, olhando deslumbrado para a câmara.

Hoje, isso não aconteceria - porque esse figurante não existiria. Saiu o real irreal, entrou o irreal irreal.

Jornalista e escritor brasileiro, autor de O Anjo Pornográfico - A Vida de Nelson Rodrigues (Tinta-da-China)

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