A grande gripe (1)
Chegou em força, matou mais do que a guerra. As estimativas variam muito, de 20 a 50, 60 ou até mesmo cem milhões de vítimas, naquele que foi o maior desastre demográfico do século XX. O confronto bélico de 1914-18 foi um dos principais agentes de disseminação da doença. Quando esta começou a produzir efeitos, encontravam-se estacionados na Europa mais de um milhão de soldados norte-americanos, dos quais um em cada quinze seria vitimado pela spanish lady, que de espanhola só tem o nome, pois a tese da origem hispânica da doença, sustentada na altura pela Royal Academy of Medicine, não tem qualquer fundamento. Ainda assim, a expressão vulgarizou-se e, em jeito de graça marialva ou humor negríssimo, dizia-se em Lisboa, sempre que um homem morria, que tinha ido para a cama com "a espanhola"...
A gripe percorreu o mundo inteiro e, para termos uma noção da sua dimensão global, basta referir que, dos três mil esquimós que viviam na costa do Labrador, dois mil morreriam de uma doença que, em graus variáveis, vitimou gente desde Espanha (250 mil mortos) à Austrália (12 mil mortos). As minorias étnicas foram particularmente afectadas: entre os índios dos Estados Unidos - um país onde morreram cerca de 550 mil pessoas -, a taxa de mortalidade atingiu 7,5 %, muito superior aos 2% da restante população; na África do Sul, a taxa de mortalidade por gripe entre os negros foi quatro vezes superior à dos brancos; na Noruega, e ao contrário de outros grupos étnicos (como os kven, imigrantes de origem finlandesa), os lapões foram literalmente dizimados, atribuindo-se este fenómeno a uma ausência de defesas imunitárias por parte dos membros desta comunidade. A Índia foi o país mais castigado, com seis milhões de mortos, mas há quem fale em 12,5 milhões de vítimas.
Além da Índia, na estatística trágica destacam-se Madagáscar, a África do Sul, a Nova Zelândia, a Guatemala e o México, com taxas de mortalidade que oscilam entre 22‰ e 35‰. Curiosamente, a China, que muitos dizem ter sido o país de origem da pandemia, registou uma reduzida taxa de mortalidade, cerca de 1%, consideravelmente inferior à de países vizinhos como o Japão ou a Indonésia.
A contagiosidade era impressionante, como o demonstram as estatísticas: 90% do pessoal do 168.º Regimento de Infantaria e dos marinheiros que se encontravam na base norte-americana de Dunquerque estavam infectados, em maior ou menor grau, pela pneumónica, uma prova cabal de que os movimentos de tropas e, sobretudo, as aglomerações de soldados em espaços fechados, em resultado da guerra, foram factores decisivos para a propagação do vírus. Outros dados são igualmente impressionantes: em 11 de Setembro de 1918, as autoridades sanitárias de Washington confidenciavam à imprensa o receio de estar iminente um novo surto de gripe; no dia seguinte, 96 mil homens, nos Estados Unidos, alistavam-se para a guerra; no dia 20 do mesmo mês, estavam declarados 9313 casos de gripe entre as tropas; no dia 23 - em apenas três dias, note-se -, tal número tinha subido para mais de 20 mil casos; em 28 de Setembro, eram já 31 mil os infectados.
Na América, por falta de pessoal, as lojas e os teatros iam fechando a um ritmo impressionante à medida que a doença infectava cerca de 25% da população. Certos pormenores são reveladores do impacto que a gripe espanhola teve nos espíritos desse tempo: num jogo de basebol realizado em Nova Iorque, todos os espectadores, bem como os próprios jogadores, usavam máscaras de gaze para evitarem o contágio; em Tucson, no Arizona, foi aprovado um regulamento que impunha a todos os cidadãos o uso de uma máscara que cobrisse a boca e o nariz; o embarque de um contingente de 140 mil soldados com destino à Europa foi cancelado após ter-se verificado o elevado número de homens afectados pela doença; em Filadélfia, uma cidade especialmente flagelada pela epidemia - devido à incúria das autoridades, no espaço de um mês pereceram cerca de 11 mil pessoas -, o serviço que preparava os cadáveres para serem enterrados entrou em colapso. A companhia telefónica da cidade esteve prestes a encerrar por falta de empregados e, por todo o mundo, os patrões tiveram de ser mais tolerantes: no Rio de Janeiro, os gerentes bancários fecharam os olhos ao consumo de cachaça durante as horas de serviço por parte dos raros funcionários que se mantinham no activo - o que, apesar disso, não evitou que muitas agências bancárias brasileiras e neozelandesas acabassem por fechar as portas, à semelhança do que sucedeu com instituições oficiais como o Parlamento da Nova Zelândia, onde 34 deputados tinham adoecido com a pneumónica.
A par das mortes, os efeitos económicos foram devastadores: as minas de cobre do Peru tiveram de encerrar, o mesmo sucedendo às da Union Minière no Congo Belga, onde foram mortalmente infectados cerca de 500 mil mineiros negros. Em diversos lugares, como na Austrália, existiram fenómenos contraditórios: várias empresas fecharam as portas por falta de pessoal, enquanto muitos trabalhadores ficaram no desemprego porque o seu ofício deixara de ser útil em tempo de crise (em Inglaterra chegou a sugerir-se que os actores e os funcionários dos teatros, agora às moscas, passassem a prestar serviços de apoio médico).
Para evitar mais contágios, deixaram de circular comboios de Berlim para a Suécia ou de Espanha para Portugal, mas a gripe já tinha feito o seu curso através das linhas de caminho-de-ferro, um dos principais agentes de propagação da doença. O ramo dos seguros, como é natural, foi dos mais afectados: empresas seguradoras da Suíça e da Alemanha pura e simplesmente cessaram pagamentos; em apenas três semanas, a Prudential Insurance Company, de Newark, teve de pagar a astronómica quantia de um milhão de dólares. O presidente da associação norte-americana de actuários calculou que, apenas nos EUA, as mortes iriam corresponder a uma perda económica da ordem dos dez milhões de anos.
Numa escala certamente mais reduzida, mas não menos dramática, à Câmara dos Deputados de Portugal foi enviada uma representação da comissão administrativa de Sesimbra que alertava para a gravíssima situação financeira aí vivida, à qual não eram alheias as "despesas extraordinárias causadas pelas terríveis epidemias que têm grassado neste concelho (gripe pneumónica, varíola e tifo exantemático)".
O uso de máscaras correu mundo: desde os polícias de Washington aos vendedores de jornais de Manitoba, passando pelos caixas dos bancos australianos, muitos foram obrigados a tapar o rosto. Ao chegarem a uma estação de caminho-de-ferro na Georgia, 1500 recrutas negros entraram em pânico, julgando que iam ser linchados, mas acabaram por constatar, aliviados, que os que os recebiam na plataforma, com máscaras brancas, não eram membros do Ku Klux Klan, mas militares, médicos e seus assistentes. A máscara era um sinal estigmatizante, como o era o facto de estar próximo dos doentes ou dos focos da epidemia. Verificaram-se casos de enfermeiras a quem foi recusada a entrada em estações de correios ou de soldados uniformizados expulsos de lugares públicos. Noutras situações, quase a lembrar os tempos da Idade Média, colocou-se às janelas das casas uma bandeira vermelha ou amarela, assinalando que aí residia uma pessoa infectada; nesses casos, os comerciantes limitavam-se a deixar as provisões na rua, não se atrevendo a entrar nas habitações assoladas pela pandemia. Outros afixavam cartazes às janelas, com os expressivos dizeres "S.O.S." ou "Comida" e no Paraguai os pedidos de socorro eram assinalados com uma bandeira branca. Em Itália, Mussolini proibiu pura e simplesmente que as pessoas se cumprimentassem com apertos de mão, sob pena de lhes ser aplicada uma pena de prisão, mas tal medida jamais entrou em vigor na prática, sendo apenas concretizada num outro ponto do planeta: a localidade de Prescott, no Arizona. Em muitas cidades norte-americanas, incluindo Nova Iorque, as autoridades locais emitiram regulamentos proibindo os cidadãos de tossir, espirrar ou cuspir, sob a ameaça de pesadas multas ou mesmo de prisão.
Emergiram, como sempre sucede nestas vagas de pânico colectivo, preconceitos racistas ou xenófobos. Na África do Sul, muitos hospitais recusaram-se a admitir doentes de raça negra, do mesmo passo que em Varsóvia as medidas sanitárias foram aplicadas com especial rigor no gueto judeu, com o argumento, publicamente afirmado pelas autoridades, de que essa comunidade era "particularmente avessa à ordem e à limpeza". No Canadá, certos jornais noticiaram que a doença não era perigosa, excepto para os que tinham origem asiática. E, ainda marcados pela memória da guerra dos Boers, muitos afrikaans recusaram-se a ser internados em hospitais militares, acabando por morrer sós em suas casas. Nos Estados Unidos, eclodiram graves tensões raciais entre brancos e negros, sobretudo na região de St. Louis, e até a tolerante Holanda encerrou as suas fronteiras aos refugiados.
Para agravar as coisas, os imigrantes não conheciam, em muitos casos, a língua do país de acolhimento, os princípios e os métodos de actuação da medicina ocidental e, acima de tudo, desconfiavam das autoridades médicas e militares integradas por indivíduos de outras etnias e convicções religiosas. Um episódio é bastante esclarecedor: em Nova Iorque, 25 marinheiros chineses, infectados pela doença, foram trazidos do navio que os transportava para o hospital; aqui chegados, viram-se no meio de dezenas de pessoas vestidas de branco, certamente atarefadas e que, para mais, não falavam a sua língua; no pavor de ser contagiado, o intérprete fugiu; os chineses recusaram-se até a tirar as roupas, com medo de que lhas roubassem, e não quiseram a comida que lhes deram, com receio de que estivesse envenenada. Em resultado disso, dos 25 internados, 17 acabariam por morrer.
Entretanto, os corpos iam-se acumulando, em cenários dantescos, ocupando hospitais inteiros, dos corredores às capelas, passando pelos ginásios e pelas cantinas. Em Filadélfia, depois de um dia em que morreram 528 pessoas, um reverendo católico decidiu percorrer a cidade em busca de cadáveres abandonados: em resultado desta busca, a morgue, que tinha capacidade para 36 corpos, foi ocupada com os restos mortais de 200 pessoas - ao verem a pilha dos mortos, mesmo os mais veteranos e experimentados funcionários da morgue recusaram-se a trabalhar naquelas condições. Provocando novas doenças, muitos cadáveres permaneciam por sepultar durante vários dias (em Atenas, a média era de cinco dias) e, em certos lugares, como a Serra Leoa, os clérigos limitavam-se a oficiar os funerais dos mortos da sua religião, deixando ao abandono os que professavam outra crença.
Em Portugal, no concelho de Rio Maior, Dídio Brazão observou uma singular mudança de hábitos: os funerais eram tão frequentes que os homens deixaram de tirar o chapéu à sua passagem. Em ruidoso contraste, uma taberneira siciliana, sempre que via passar um funeral, erguia o seu copo e, levando-o aos lábios, exclamava aos gritos: "Não me vão apanhar - eu bebo vinho!" Como à época eram frequentes as filas (para comprar leite ou vegetais com senhas de racionamento), e como os cadáveres se acumulavam à espera de sepultura, o jornal parisiense L'Oeuvre ironizou acidamente, dizendo: "Depois de termos tido de fazer fila para viver, agora fazemos fila para ser enterrados."
Floresceu a religiosidade, mas também as crenças e as superstições. Um historiador chegou a definir a doença como "um dos mais engenhosos truques de Deus". Em Belém, no Brasil, um marinheiro que rezava junto à imagem da Senhora da Consolação jurou ter visto a estátua a derramar uma lágrima, em sinal de luto. Por sua vez, o correspondente em Itália do Chicago Daily News, delirando na cama de um hospital militar, julgou que iria ser salvo da morte por ter contemplado, poucos dias antes, um quadro renascentista em que a Virgem, aos pés de Cristo na cruz, tinha as feições da sua mulher. Até médicos deixavam-se contagiar por crenças estranhas: o clínico de serviço na embaixada britânica em Banguecoque, ao ver as rosas do seu jardim a definhar, afirmou que "algo andava no ar" e que isso iria fatalmente afectar não apenas as flores como os seres humanos.
Em Montreal, no Canadá, o facto de os céus terem escurecido levou alguns a espalhar a profecia de que uma grave pestilência se aproximava. Uma enfermeira na Nova Zelândia asseverou ter visto o sinal da cruz no firmamento celeste, e o inédito aparecimento de corujas em Paranhos da Beira, em Portugal, fez crer às populações que algo de mau estava para vir. Pontualmente surgiu a convicção de que uma doença tão mortífera não podia ter origem humana: quando o Jardim Zoológico de Regent's Park, em Londres, colocou os chimpanzés em celas de vidro para evitar que fossem contaminados pelos visitantes, logo se levantaram vozes dizendo que tal medida era injusta, pois tinham sido os macacos a transmitir a pneumónica aos humanos.
Em África, a pneumónica fez renascer crenças e movimentos milenaristas, enquanto outros preferiam as teorias conspirativas, como a que garantia que a doença era uma arma secreta do Kaiser, espalhada ao longo da costa britânica por agentes secretos enviados por submarinos; esta tese omitia, porém, o facto de a "arma secreta" dos exércitos germânicos ter, ao cabo e ao resto, acabado por matar cerca de 225 mil alemães. A associação entre os dois flagelos - a belicosidade germânica e a doença espanhola - impregnou o imaginário colectivo em vários países da Europa: "Le boche est vaincu, oui. La grippe ne l'est pas", ostentavam cartazes que os parisienses, com uma máscara a tapar o rosto, transportavam pela capital francesa. E alguns periódicos ingleses, como o London Times, insistiram vezes sem conta na tese de uma conspiração teutónica em redor da gripe pneumónica.
Como sempre sucede nas grandes epidemias, a pneumónica não escolheu classes nem estratos sociais: ninguém estava a salvo do contágio ou, como assinalou William Beveridge, o pai do Welfare State, "pessoas de todas as classes socioeconómicas, de reis a vagabundos, sofreram na mesma medida". Na verdade, várias personalidades eminentes foram infectadas: o presidente Woodrow Wilson, que quase morreria de gripe em Abril de 1919, e os primeiros-ministros francês e inglês, Georges Clemenceau e David Lloyd George, para não falar do general Louis Botha, o primeiro líder do governo da União da África do Sul, do dramaturgo Edmond Rostand, do pretendente ao trono imperial chinês Lu Kuang, do marajá de Jodphur, do célebre actor do cinema mudo Harold Lockwood, do maratonista de natação americano Harry Elionsky, do príncipe Erik da Suécia, do duque italiano Leopoldo Torlonia, do então secretário adjunto da Marinha Franklin Delano Roosevelt, do presidente do Brasil Wenceslau Brás, de Walt Disney, de Mary Pickford, da rainha Alexandrina da Dinamarca, do sultão-califa Mohammed VI da Turquia, do príncipe Yamagata do Japão, do marechal Joffre, do general John Pershing...
(Continua)
Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.