Desde há uns tempos todos os anos são ímpares
De dois em dois anos, creio, ainda não fiz as contas com atenção, temos uma informação segura sobre o ano que entra. Estamos num caso desses: 2019 vai ser um ano ímpar. Porém, o facto de ser ano ímpar - aí, confirmo rapidinho, divido o número inteiro 2019 por dois, não dá número inteiro, logo é ímpar -, ser ano ímpar, dizia eu, não nos leva longe. É verdade que dividido por dois dá 1009,5, mas além de isso demonstrar a imparidade do 2019, de que mais ficamos informados sobre o ano 2019 por ser o 2019? Exatamente, nada.
Eu sei, leitor, o parágrafo anterior parece-lhe parvo. Eu sei. E insisto para que o leia como parágrafo parvo. Ajuda-me a concluirmos juntos, em chegando o fim de um ano, sobre a tolice de nos deitarmos a adivinhar o ano seguinte. Para o ano vai acontecer isto, dizemos em conversas comuns, lemos em textos de especialistas publicados por jornais, orçamentam os Estados com previsões... E sabem eles e sabemos nós exatamente o mesmo com o que o anterior parágrafo chegou ao fim: nada.
Certo, quem prognosticou 2001 como ano ímpar acabou por acertar. É certo que acertaram só bem mais para lá do meio do ano, num dia 11 e com duas torres gémeas, ambos, o 11 e as torres, com aparência de pares até dizer chega. Mas que 2001 foi ímpar, foi! Até no ano 2100, redondinho, se dirá que sim. Ímpar. Mas, lá está, com as mesmas dimensões históricas e planetárias do ataque à capital do Império americano foi a emergência dessa aberração chamada Donald Trump e dessa estupidez de referendo que vai amputar a Europa daqueles que mais fizeram pelo papel da Europa no mundo. E esses dois magnos fenómenos aconteceram em 2016. Retomo a calculadora: divido por dois dá 1008, número inteiro. É, 2016 foi ano par.
Então, seja porque ser ano ímpar não quer dizer nada seja porque há anos pares que também foram ímpares, deitarmo-nos a adivinhar sobre 2019 não leva longe. O máximo que leva é à desilusão: ano ímpar ou par, é igual. Mas eu vou mais longe e a partir daqui abandono os parágrafos parvos. O que vou dizer a seguir é de extrema importância e, até, de utilidade pública: agora, sejam os anos pares ou ímpares, exige a prudência que os consideremos sempre ímpares.
Um dia, num jornal qualquer, acho que se chamava Tempo, numa secção qualquer, era daquelas em que repórter estagiário saía a rua para fazer perguntas banais a gente comum, escreveu-se uma resposta de que nunca me esqueci. O estagiário entrevistava um sapateiro de vão de escada, na Rua Morais Soares. A coisa decorria num bocejo, até que se chegou à derradeira pergunta. O jornalista desesperou-se: conte então lá uma coisa que o marcou. E o sapateiro: "Um dia, entrou aqui a mulher do Vasques, fez cair um frasco de tinta e estragou-me um sapato."
Reparem, era a mulher do Vasques, não o Vasques; e o Vasques, da equipa do Sporting (e aqui há que dizê-lo, era o Sporting, não o Benfica nem o Real Madrid), embora dos 5 Violinos, era o mais modesto. Isso quanto às personagens. Quanto aos factos: nem foi um par de sapatos, foi um; e não foi para deitar fora, ficou manchado. Pois bem, a história do momento culminante da vida de um homem, pelo menos aquela em que livremente escolheu como epítome da sua passagem por este mundo, foi ter testemunhado o manchar de um sapato. O que eu quero dizer é que houve tempos em que as nossas vidas decorriam como um ano par, num vão de escadas, na Morais Soares.
Ora, nesta semana, no jornal Le Monde, um jornal calmo e conservador, li duas tribunas sobre um assunto que, nessa mesma edição, foi retomado no editorial. Escrevia-se com argumentações diversas que os recentes acontecimentos com coletes amarelos impunham mudanças nas práticas da velha democracia. Até agora, o povo elegia os seus deputados, estes faziam as leis e estas eram aplicadas - a coisa funcionava por deputação dos poderes do povo aos políticos. Alguém disse disto, a democracia, que era o pior dos regimes políticos, mas não havia melhor do que ela.
Entretanto, em França, milhares de excitados sem programa mas com pneus para queimar em rotundas fizeram saber de forma assertiva que não tinham programa mas tinham pneus, e acessoriamente algum gasóleo e fósforos. É a única poesia que teve este movimento malvestido: incendiou-se por causa do aumento do gasóleo e acabou a desperdiçar gasóleo... O facto é que já assustou e levou a propostas de compromissos em tribunas e editorial de um velho, calmo e conservador jornal. E se, escreveu-se, governasse com referendos populares? Passou-se logo ao seu enquadramento e regulamentação, que, como com o comer, abrem o apetite...
Quantas assinaturas para ser tido em conta o apelo ao referendo? E que referendar? Tudo (por exemplo, matar os tortos) ou haveria limites? E a periodicidade de referendos: pode referendar-se a abolição da pena de morte e três dias depois voltar a referendar-se? Vastas propostas...
Voltando a 2019 e aos prognósticos: a incerteza é certa, não ano a ano mas por uma época que parece ir estender-se. Para a dominarmos na medida do possível, comecemos por não ter demasiadas certezas.