Não sei o que hei-de dizer! Fiquei atado, e estou atado, sem saber o que hei-de dizer! .Palavras feéricas, arrebatadas, as que o crítico dirigiu a Bambi, "desse genial feiticeiro de beleza que se chama Walt Disney". Perdoemos-lhe o exagero, como tantos outros exageros seus, que um recente e excelente livro de Anna Klobucka procura enquadrar naquilo que designa por "o mundo gay de António Botto". Justificadas ou não, certamente irrelevantes para a apreciação da qualidade literária de um poeta que muitos insistem em considerar medíocre, a mitomania e a megalomania de Botto são dos traços mais característicos da sua complexa personalidade, a um tempo gloriosa e trágica. Nos seus poemas - e não só -, Botto assumiu plena e corajosamente o erotismo homossexual, sem que isso, note-se, tenha afectado a enorme popularidade que conheceu em vida. Com efeito, a sua homossexualidade, patente e festiva, não lhe valeu ser perseguido ou ostracizado. Teve livros apreendidos pelo Governo Civil de Lisboa, decerto, foi alvo de manifestações moralistas dos estudantes conservadores da capital, viu-se exonerado de funções públicas em 1942 por, nas palavras do próprio Diário do Governo, "dirigir galanteios e frases de sentido equívoco a um seu colega", além de "fazer versos e recitá-los durante as horas regulamentares do funcionamento da repartição". Contudo, não deixou de ter publicados vários livros de prosa e poesia (com versos dedicados ao dérbi Benfica-Sporting), foi colaborador assíduo dos principais jornais do país, chegou a escrever no boletim da Legião Portuguesa, sendo ademais um admirador convicto do doutor Oliveira Salazar. Em 1921, Manuel Teixeira Gomes, então embaixador em Londres e futuro Presidente da República, não hesitou em fazer o prefácio para a primeira edição de Canções e, em circunstâncias nunca esclarecidas, Botto conseguiu empregar-se como funcionário público em Angola e, mais tarde, no Governo Civil de Lisboa. Pessoa, Régio, Gaspar Simões e Sena louvaram-lhe os escritos, o Estado da Irlanda editou o seu Livro das Crianças, que no frontispício ostenta a aprovação eclesial do cardeal-patriarca de Lisboa, Gonçalves Cerejeira, concedida já depois, note-se, da campanha moralizadora que os estudantes lisbonenses desencadearam em 1923. Na rubrica "Ecos da Semana", publicada no Sempre Fixe, Carlos Botelho podia alegremente caricaturar o poeta, acompanhado de um operário ou de um estivador, a ser interpelado na rua por um cabo-de-esquadra, sem que daí surgisse alarido de maior. Nos cafés, Pessoa troçava dele, contava anedotas aflautando a voz, mas nunca lhe faltou com o apoio nem com a amizade (que Botto, aliás, nem sempre soube merecer, não hesitando, anos depois, em depreciar a obra pessoana: "Apesar de ter sido e ser amicíssimo do Fernando Pessoa, não gosto nem admiro a obra que deixou.")..No auge da fama, António Botto conhece o infante Don Luis Fernando de Orleans y Borbón, membro da família real espanhola, a quem em Madrid apelidavam de "rei dos maricas". Expulso de Paris pela prefeitura da polícia (segundo se diz, devido à morte acidental de um marinheiro na casa onde residia), o escandaloso príncipe busca refúgio em Portugal na companhia do seu secretário e amigo íntimo, António de Vasconcelos, filho de um importador de vinhos do Porto. Em Março de 1926, Don Luis será preso no Algarve, na fronteira com o país vizinho, disfarçado de mulher espanhola e sob suspeita de tráfico de drogas. No início do ano seguinte, parte com Botto para Itália, instalando-se ambos no Hotel Bertolini em Nápoles, onde são vigiados de perto pelas autoridades consulares espanholas, a mando directo de Afonso XIII. A polícia napolitana notava nos seus relatórios que o infante tinha por péssimo hábito meter conversa com os chauffeurs de praça, a quem oferecia cigarros e tratava de forma bastante efusiva. O príncipe e o poeta separam-se nessa cidade - Don Luis em direcção a Roma, Botto rumo a Paris - e nada mais se sabe de uma digressão amorosa que para sempre ficará na sua memória; é sintomático que, entre os poucos papéis dessa época conservados no seu espólio, António Botto tenha guardado o bilhete de primeira classe do vapor que o levou a Nápoles. A excursão italiana e a paixão fátua de Don Luis foram as experiências mais cosmopolitas e glamorosas que conheceu em vida, uma existência decerto monótona e desinteressante para os seus devaneios de grandeza e fama..Não é exagero dizer-se que, mais do que da homossexualidade, flagrante e assumida, foi das origens sociais e da escassez de formação e de cultura que António Botto verdadeiramente se envergonhou. Residirá aí a explicação possível, necessariamente parcial e incompleta, para tantas e tantas mentiras que disse sobre a sua biografia e sobre o sucesso mundial dos seus livros, que asseverou terem sido traduzidos em várias línguas e objecto de muitas centenas de milhares de tiragens. António, rapaz de Lisboa, nascido em Concavada, no Ribatejo, afirmava ter sido educado em Inglaterra - e de aos 18 anos, ser colaborador do Times Literary Supplement... -, quando a sua infância fora passada em Alfama, entre varinas e estivadores, ou fragateiros como seu pai. Disse ser amigo do famoso bailarino Nijinsky, com quem jamais se avistou. Garantiu que García Lorca, "um amigo muito amado, um quase irmão", lhe admirava a obra e lhe escrevera centenas de cartas laudatórias, outra descabelada invenção. Pôs Virginia Woolf a louvar-lhe um livro de 1948 - e a prometer que sobre ele iria falar no suplemento literário do Times -, quando a escritora morrera sete anos antes, em 1942. Também Paul Valéry elogiaria a sua "glória internacional" num escrito datado 1947, isto apesar de ter falecido em 1945. Os nomes dos que o incensavam nunca pararam de crescer - Pirandello, Unamuno, James Joyce, André Gide, Gabriela Mistral - e, às tantas, Botto começou a cortar relações com quem ousasse não o considerar o maior poeta português vivo. Não podia acabar bem..Devorado pelo ego e pela sífilis, vai para o Brasil em 1947 com a sua companheira e cuidadora, Carminda Silva Rodrigues, a quem tratava por "enfermeira". A viagem terá sido feita, segundo disse, a expensas do banqueiro Ricardo Espírito Santo Silva. Antes de desembarcar na Guanabara, no dia do seu 50.º aniversário, já os jornais cariocas anunciavam a chegada ao trópico do "maior poeta vivo de Portugal". Hospedado numa espelunca de Copacabana onde recebe um crédulo Drummond de Andrade, o poeta desdobra-se em entrevistas em que manifesta a intenção de se naturalizar brasileiro e aproveita para desfiar os nomes das celebridades com quem conviveu de perto: Bernard Shaw, Mussolini, Afonso XIII, o rei Vítor Emanuel, Eduardo VIII, Mistinguett, Maurice Chevalier, Rudyard Kipling e, obviamente, García Lorca. Em verso, revela outras amizades imaginárias (Laurence Olivier, Vivien Leigh, além de "escritores, princesas, engenheiros") e chega a dizer a um jornal que o cineasta Frank Capra conversara longamente com ele no Avenida Palace, em Lisboa, para o contratar para o papel principal de Hamlet. A seu lado, sempre vestida de preto, Carminda confirmava tudo, em eterna adulação, nem sempre retribuída. Acometido por um frémito de religiosidade que em 1955 o leva a publicar Fátima. Poema do Mundo, mostra-se lúcido em certas apreciações que faz do Brasil, ainda que algumas delas bastante cáusticas e amarguradas, mas tristemente actuais: "País condenado pela política a desaparecer nas extravagâncias do absurdo, da desorientação - o caos", escreve em 1958, acrescentando que "a desigualdade vai gerando a revolta colectiva de todas as multidões. Os governos destes países não medem as necessidades do povo, na sua extrema alimentação indispensável, vão caindo no ódio e na vingança que não tardará a manifestar-se na maior violência justificada pelo abandono e pela exploração dos preços". Arrastando-se no limiar da miséria, em permanente errância entre hotéis, pensões e quartos alugados, com engates ocasionais na Cinelândia, solicita à embaixada portuguesa que o repatrie, mas o pedido é negado. Em momentos de maior delírio, chega a dizer que Proust o visitara em Lisboa e proclama-se dono da cidade de São Paulo. Em 4 de Março de 1949, António Tomás Botto foi mortalmente atropelado por um camião na Avenida Nossa Senhora de Copacabana..Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.
Não sei o que hei-de dizer! Fiquei atado, e estou atado, sem saber o que hei-de dizer! .Palavras feéricas, arrebatadas, as que o crítico dirigiu a Bambi, "desse genial feiticeiro de beleza que se chama Walt Disney". Perdoemos-lhe o exagero, como tantos outros exageros seus, que um recente e excelente livro de Anna Klobucka procura enquadrar naquilo que designa por "o mundo gay de António Botto". Justificadas ou não, certamente irrelevantes para a apreciação da qualidade literária de um poeta que muitos insistem em considerar medíocre, a mitomania e a megalomania de Botto são dos traços mais característicos da sua complexa personalidade, a um tempo gloriosa e trágica. Nos seus poemas - e não só -, Botto assumiu plena e corajosamente o erotismo homossexual, sem que isso, note-se, tenha afectado a enorme popularidade que conheceu em vida. Com efeito, a sua homossexualidade, patente e festiva, não lhe valeu ser perseguido ou ostracizado. Teve livros apreendidos pelo Governo Civil de Lisboa, decerto, foi alvo de manifestações moralistas dos estudantes conservadores da capital, viu-se exonerado de funções públicas em 1942 por, nas palavras do próprio Diário do Governo, "dirigir galanteios e frases de sentido equívoco a um seu colega", além de "fazer versos e recitá-los durante as horas regulamentares do funcionamento da repartição". Contudo, não deixou de ter publicados vários livros de prosa e poesia (com versos dedicados ao dérbi Benfica-Sporting), foi colaborador assíduo dos principais jornais do país, chegou a escrever no boletim da Legião Portuguesa, sendo ademais um admirador convicto do doutor Oliveira Salazar. Em 1921, Manuel Teixeira Gomes, então embaixador em Londres e futuro Presidente da República, não hesitou em fazer o prefácio para a primeira edição de Canções e, em circunstâncias nunca esclarecidas, Botto conseguiu empregar-se como funcionário público em Angola e, mais tarde, no Governo Civil de Lisboa. Pessoa, Régio, Gaspar Simões e Sena louvaram-lhe os escritos, o Estado da Irlanda editou o seu Livro das Crianças, que no frontispício ostenta a aprovação eclesial do cardeal-patriarca de Lisboa, Gonçalves Cerejeira, concedida já depois, note-se, da campanha moralizadora que os estudantes lisbonenses desencadearam em 1923. Na rubrica "Ecos da Semana", publicada no Sempre Fixe, Carlos Botelho podia alegremente caricaturar o poeta, acompanhado de um operário ou de um estivador, a ser interpelado na rua por um cabo-de-esquadra, sem que daí surgisse alarido de maior. Nos cafés, Pessoa troçava dele, contava anedotas aflautando a voz, mas nunca lhe faltou com o apoio nem com a amizade (que Botto, aliás, nem sempre soube merecer, não hesitando, anos depois, em depreciar a obra pessoana: "Apesar de ter sido e ser amicíssimo do Fernando Pessoa, não gosto nem admiro a obra que deixou.")..No auge da fama, António Botto conhece o infante Don Luis Fernando de Orleans y Borbón, membro da família real espanhola, a quem em Madrid apelidavam de "rei dos maricas". Expulso de Paris pela prefeitura da polícia (segundo se diz, devido à morte acidental de um marinheiro na casa onde residia), o escandaloso príncipe busca refúgio em Portugal na companhia do seu secretário e amigo íntimo, António de Vasconcelos, filho de um importador de vinhos do Porto. Em Março de 1926, Don Luis será preso no Algarve, na fronteira com o país vizinho, disfarçado de mulher espanhola e sob suspeita de tráfico de drogas. No início do ano seguinte, parte com Botto para Itália, instalando-se ambos no Hotel Bertolini em Nápoles, onde são vigiados de perto pelas autoridades consulares espanholas, a mando directo de Afonso XIII. A polícia napolitana notava nos seus relatórios que o infante tinha por péssimo hábito meter conversa com os chauffeurs de praça, a quem oferecia cigarros e tratava de forma bastante efusiva. O príncipe e o poeta separam-se nessa cidade - Don Luis em direcção a Roma, Botto rumo a Paris - e nada mais se sabe de uma digressão amorosa que para sempre ficará na sua memória; é sintomático que, entre os poucos papéis dessa época conservados no seu espólio, António Botto tenha guardado o bilhete de primeira classe do vapor que o levou a Nápoles. A excursão italiana e a paixão fátua de Don Luis foram as experiências mais cosmopolitas e glamorosas que conheceu em vida, uma existência decerto monótona e desinteressante para os seus devaneios de grandeza e fama..Não é exagero dizer-se que, mais do que da homossexualidade, flagrante e assumida, foi das origens sociais e da escassez de formação e de cultura que António Botto verdadeiramente se envergonhou. Residirá aí a explicação possível, necessariamente parcial e incompleta, para tantas e tantas mentiras que disse sobre a sua biografia e sobre o sucesso mundial dos seus livros, que asseverou terem sido traduzidos em várias línguas e objecto de muitas centenas de milhares de tiragens. António, rapaz de Lisboa, nascido em Concavada, no Ribatejo, afirmava ter sido educado em Inglaterra - e de aos 18 anos, ser colaborador do Times Literary Supplement... -, quando a sua infância fora passada em Alfama, entre varinas e estivadores, ou fragateiros como seu pai. Disse ser amigo do famoso bailarino Nijinsky, com quem jamais se avistou. Garantiu que García Lorca, "um amigo muito amado, um quase irmão", lhe admirava a obra e lhe escrevera centenas de cartas laudatórias, outra descabelada invenção. Pôs Virginia Woolf a louvar-lhe um livro de 1948 - e a prometer que sobre ele iria falar no suplemento literário do Times -, quando a escritora morrera sete anos antes, em 1942. Também Paul Valéry elogiaria a sua "glória internacional" num escrito datado 1947, isto apesar de ter falecido em 1945. Os nomes dos que o incensavam nunca pararam de crescer - Pirandello, Unamuno, James Joyce, André Gide, Gabriela Mistral - e, às tantas, Botto começou a cortar relações com quem ousasse não o considerar o maior poeta português vivo. Não podia acabar bem..Devorado pelo ego e pela sífilis, vai para o Brasil em 1947 com a sua companheira e cuidadora, Carminda Silva Rodrigues, a quem tratava por "enfermeira". A viagem terá sido feita, segundo disse, a expensas do banqueiro Ricardo Espírito Santo Silva. Antes de desembarcar na Guanabara, no dia do seu 50.º aniversário, já os jornais cariocas anunciavam a chegada ao trópico do "maior poeta vivo de Portugal". Hospedado numa espelunca de Copacabana onde recebe um crédulo Drummond de Andrade, o poeta desdobra-se em entrevistas em que manifesta a intenção de se naturalizar brasileiro e aproveita para desfiar os nomes das celebridades com quem conviveu de perto: Bernard Shaw, Mussolini, Afonso XIII, o rei Vítor Emanuel, Eduardo VIII, Mistinguett, Maurice Chevalier, Rudyard Kipling e, obviamente, García Lorca. Em verso, revela outras amizades imaginárias (Laurence Olivier, Vivien Leigh, além de "escritores, princesas, engenheiros") e chega a dizer a um jornal que o cineasta Frank Capra conversara longamente com ele no Avenida Palace, em Lisboa, para o contratar para o papel principal de Hamlet. A seu lado, sempre vestida de preto, Carminda confirmava tudo, em eterna adulação, nem sempre retribuída. Acometido por um frémito de religiosidade que em 1955 o leva a publicar Fátima. Poema do Mundo, mostra-se lúcido em certas apreciações que faz do Brasil, ainda que algumas delas bastante cáusticas e amarguradas, mas tristemente actuais: "País condenado pela política a desaparecer nas extravagâncias do absurdo, da desorientação - o caos", escreve em 1958, acrescentando que "a desigualdade vai gerando a revolta colectiva de todas as multidões. Os governos destes países não medem as necessidades do povo, na sua extrema alimentação indispensável, vão caindo no ódio e na vingança que não tardará a manifestar-se na maior violência justificada pelo abandono e pela exploração dos preços". Arrastando-se no limiar da miséria, em permanente errância entre hotéis, pensões e quartos alugados, com engates ocasionais na Cinelândia, solicita à embaixada portuguesa que o repatrie, mas o pedido é negado. Em momentos de maior delírio, chega a dizer que Proust o visitara em Lisboa e proclama-se dono da cidade de São Paulo. Em 4 de Março de 1949, António Tomás Botto foi mortalmente atropelado por um camião na Avenida Nossa Senhora de Copacabana..Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.