Janus: as duas faces do poder
1 No fim de semana passado, o ministro da Defesa Nacional, Dr. João Cravinho, fez publicar um estimulante artigo realçando a importância do conceito do "uso dual", o qual, em termos "operacionais", traduz a possibilidade de uma acção levada a cabo por uma estrutura pertencente a um determinado operador produzir não só o objectivo pretendido, no âmbito do sector onde se insere, como também objectivo distinto correspondente a outro sector de actividade.
Tal significa, no plano estatal, que uma acção pode contribuir para a realização simultânea de diferentes objectivos respeitantes aos seus diferentes departamentos, ganhando o Estado maior eficiência, pois em vez de utilizar dois operadores diferentes concentra apenas num a concretização de ambos os objectivos.
A utilidade deste conceito é então óbvia e universal mormente em Estados onde a natureza das decisões que formula facilmente conduz a áreas de sobreposição e/ou duplicação funcional, permitindo conflitos institucionais, ausência de soluções céleres e custos mais elevados.
Portugal é um bom exemplo desta anomalia, que, acrescida à crise económica que dela decorre, traduz circunstâncias que legitimam profunda reversão do statu quo.
2 Há muitos anos que o conceito de "uso dual" é caro às Forças Armadas, que, empenhadas em várias missões, cumprem simultaneamente objectivos inerentes à "Defesa Militar" e outros também relevantes, respeitantes a outros domínios do Estado ou da sociedade, nomeadamente da Segurança Interna e Protecção Civil.
Operações de vigilância aérea ou marítima, busca e salvamento, preparação de terrenos e vias de comunicação são alguns dos múltiplos exemplos que se podia
referir.
Paradoxalmente, onde o conceito deveria ter tradução mais visível e permanente, sobretudo entre os operadores dos sectores acima referidos, é onde se detetam disfunções e inconsistências, que, para além de fontes de conflitos sistémicos, agravam as despesas do Estado, comprometendo um nível de eficiência adequado dos recursos que se consagram ao seu desempenho.
O poder dos "interesses instalados", rivalidades pueris ou a celebração de projectos-espectáculo sobrepõem-se ao "interesse global", ao melhor desempenho do Estado, à racionalização de recursos, à obtenção de melhores índices de produtividade.
Sempre a Armada disponibilizou todos os meios que possuía para utilização de elementos de GNR, PJ, SEF ou AT no exercício das suas funções específicas na área marítima.
3 Aqueles critérios não foram considerados pelo governo de José Sócrates quando António Costa, seu ministro da Administração Interna, fez renascer a UCC - departamento da GNR - promovendo a ideia de substituir a Armada nas funções de vigilância marítima das águas costeiras, que esta sempre realizara e continua a realizar parcialmente, a inteiro contento.
As "ondas de choque" então criadas, apesar de profundas e silenciosas, continuam vivas como se vislumbra no artigo do ministro da Defesa Nacional, mormente no tempo e no modo como está elaborado.
No tempo, ao fazê-lo suceder à notícia de aquisição de uma megalancha-navio de navegação oceânica, e outras de menor dimensão para equipar a UCC da GNR.p>
No modo, como ao colocar no título do seu artigo a Armada Portuguesa como caso de aplicação do modelo de "duplo uso" mais não fez do que realçar o contraste entre o seu conteúdo e práticas consequentes, e a ausência de critérios análogos em outros corpos do Estado, nomeadamente na GNR. É pois um destacado ministro do actual Governo a revelar duas concepções político-institucionais opostas que se expressam no seu Governo: as do ministro da Defesa Nacional e a do ministro da Administração Interna.
A primeira prima por racionalidade, modernidade, adaptação aos tempos e circunstâncias que atravessamos.
A segunda mergulha no desprezo de normas de bom senso, de eficiência, de contenção de problemas orçamentais e porventura até num complexo antimilitar que certa esquerda "bem pensante" não deixou de manifestar mesmo maculando a prestigiosa GNR com a sua experiência legislativa e operacional.
O Governo que apela ao rigor e à moderação, que pede encarecidamente apoio à UE, que impõe uma pesada carga fiscal aos contribuintes, é o mesmo que, podendo dar exemplos práticos na sua governação de justeza e equidade, os ignora e exibe superlanchas para um dos corpos do Estado.
Quem assim governa ignora o mal-estar que grande parte das FA sente e manifesta perante a crescente dificuldade em cumprir as suas missões, dada a carência de meios que o Estado lhes impõe.
Quem assim governa permite e acelera a eclosão e o desenvolvimento de tensões entre órgãos importantes do Estado, não cuidando das condições de estabilidade e eficiência dos seus desempenhos.
Quem assim governa continua a ignorar o continuum que o nosso mar evidencia e que carece de um princípio de unidade de acção e doutrina na fiscalização, e monitorização das actividades que nele decorrem, e que desde sempre foram atribuídas à Armada.
Criar problemas a essa componente fundamental da Defesa Militar quando se percebe ser sobretudo no mar onde se concentram as principais ameaças à nossa "segurança nacional" é um erro de quem não tem uma visão prospectiva sobre a sua natureza e configuração.
Quem assim governa ignora o sentimento dos cidadãos que sentem e percebem não ser justificável a afectação de mais recursos para outras organizações quando a Armada já executa com qualidade e profissionalismo o conjunto das actividades atinentes ao adequado uso do mar de acordo com o interesse nacional.
A política do Governo neste domínio tem como referência o deus Janus - de duas faces reflectindo assim no seio do mesmo executivo políticas opostas, e a questão nuclear que em última instância se coloca ao país é se ele deve acolher a poupança ou o desperdício, a racionalidade ou a inconsistência, a modernidade flexível ou a compartimentação exagerada.
Tal como em outras áreas da acção executiva, o Governo fica a "meio da ponte", a caminho entre o SIM e o NÃO sem se definir.
4 O artigo do Dr. João Cravinho é pois de aplaudir pelo tema e a qualidade com que o faz, pela oportunidade que manifesta, por reflectir o sentir das F.A. que tutela.
Lamenta-se que em 2018, aquando da aprovação de aquisição das lanchas, não tivesse já um contacto mais profundo com o enquadramento do conceito de "duplo uso" na realidade que respeita à Defesa Militar, Segurança Interna e Protecção Civil.
Talvez agora não necessitasse de o relembrar.
Os silêncios que entretanto se pressentem de outras áreas da governação são um mau indício!
Em vez de se debaterem seriamente algumas questões relevantes, encerram-se em túmulos blindados de quietude sonolenta.
O silêncio torna-se então inércia, inépcia e desprezo. São pois necessários tempos de mudança!
Ex-ministro da Administração Interna e coordenador da Defesa Nacional do Conselho Estratégico Nacional do PSD.r> Escreve de acordo com a antiga ortografia,