Eles não cabem no nosso futuro

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Reconheço as preocupações que muitos pensadores expressam sobre o que será o mundo, no rescaldo da pandemia do coronavírus. Uma boa parte diz que esta crise pulveriza as nossas sociedades e desestrutura a democracia e as alianças que nos ligam a outros povos, promove a tendência para o isolamento, o egoísmo nacionalista e a perda dos pontos de referência que davam sentido às relações internacionais. Assim, o mundo sairia da crise fragmentado, com cada país mais centrado sobre si próprio, mais autocrático e com as instituições do sistema multilateral bastante enfraquecidas.

Proponho uma leitura diferente da rota que agora navegamos. Acredito que a crise nos dá a oportunidade para reforçar a dimensão humanista que tem faltado, quer ao nível das políticas domésticas quer na cena internacional. Sairemos certamente mais pobres do ponto de vista económico, mas podemos ficar bem mais ricos do lado da política.
É uma questão de boa liderança e de movimentos de cidadania fortes. A pandemia veio lembrar-nos que as pessoas são o fim essencial da política. Não as pessoas num sentido geral e abstrato, mas sim cada um de nós, em simultâneo na nossa individualidade e enquanto membros do espaço social a que pertencemos. A política deve colocar uma ênfase reforçada na proteção e no respeito dos nossos direitos fundamentais, a começar pelo direito à dignidade, à saúde, à segurança e à diversidade, bem como criar condições para que cada um possa desenvolver o seu potencial como melhor souber.

Creio que o drama pandémico preparou uma boa parte dos cidadãos para um novo tipo de consciência no que respeita à sua relação com os outros e a natureza. Penso que nos tornou mais comedidos nas nossas ambições. Estamos perante a possibilidade de renovar a prática política. Essa é a principal conclusão que tiro da situação presente.
É igualmente a linha que orienta a minha visão do futuro. Fazer política amanhã terá de significar que se luta continuamente pelos direitos humanos, pela democratização, pela lisura na gestão pública e por mais solidariedade. Há que tirar partido da maturidade adquirida durante este período de choque. Se assim acontecer, ganha a credibilidade da política, cimenta-se a cooperação multilateral e estaremos em melhor posição para encarar aqueles que considero os três maiores desafios globais da década: a luta contra a pobreza, a defesa da liberdade e a regeneração do ambiente, a começar pela mitigação das alterações climáticas.

Na verdade, nada disto deveria ser novo para nós, europeus. O artigo 2.º do Tratado da União Europeia define claramente - e com uma redação feliz, o que nem sempre é o caso quando se trata de compromissos legais entre Estados - os valores que constituem os alicerces fundamentais do nosso projeto comum, incluindo a centralidade da dimensão humana da política. Só que os políticos, em geral muito hábeis nos jogos de oportunismo e na ambiguidade dos consensos destinados a agradar a gregos e a troianos, nem sempre se apoiam como deveriam nesse artigo do Tratado.

Nestas circunstâncias, é fundamental que o orçamento da Comissão Europeia para o período 2021-2027 e o plano excecional de recuperação económica, que deverá responder aos desafios criados pela pandemia, reconheçam a essencialidade do respeito por cada Estado membro da letra e do espírito do artigo 2.º já mencionado. Orçamentos e democracia são as duas faces da mesma Europa. Aqui não pode haver truques nem malabarismos ou jogos de palavras e de mal-entendidos. Os vetos da Hungria de Viktor Orbán e da Polónia de Jaroslaw Kaczynski, agora também com o apoio de Janez Janša, o primeiro-ministro da Eslovénia, são inaceitáveis. Falemos claro. Orbán é um déspota à cabeça de uma clique que muitos acusam de cleptocracia. Kaczynski é um retrógrado que explora ideias de outros tempos. Janša é um pequeno bronco: foi o único dirigente europeu que felicitou Donald Trump pela sua "vitória" eleitoral. Todos eles manipulam as opiniões públicas dos respetivos países e não irão mudar, enquanto mantiverem o controlo do poder. Não podemos deixar que esses senhores pensem que a UE é apenas uma fonte de dinheiros, sem ligação com uma política de valores e de direitos democráticos. Qualquer cedência nesta matéria significaria que não teríamos aprendido nada com a revolução cultural que a crise pandémica nos está a proporcionar.

Conselheiro em Segurança Internacional.
Ex-representante especial da ONU

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