No final do discurso com que encerrou a participação do PS no debate do Orçamento do Estado (OE) para 2021, na sexta-feira, na Assembleia da República - uma intervenção fortemente apostada em "malhar" no Bloco de Esquerda -, a líder parlamentar dos socialistas, Ana Catarina Mendes, fez, todavia, questão de pôr um pé a impedir que se fechasse definitivamente a porta nas relações entre as duas forças..Esse movimento traduziu-se numa frase: "A legislatura está a meio e quero crer que voltaremos, sem encenações, estados de alma ou angústias, a convergir no essencial. E digo mais: quanto mais cedo e depressa o fizermos e o conseguirmos, melhor. O PS, medida a medida, passo a passo, está aberto, como sempre esteve, a este diálogo e tudo faremos para que a separação que hoje aqui se viu entre o Bloco e as forças progressistas não se repita.".Antes, na mesma sessão, a líder bloquista Catarina Martins também tinha feito questão de salientar ao PS que não terá outro remédio senão prosseguir conversas à esquerda - e fê-lo explorando a seu favor o acordo do PSD com o Chega nos Açores: "Quero mesmo agradecer ao Dr. Rui Rio. Nos últimos anos, ninguém fez tanto em tão pouco tempo pelo reforço da posição da esquerda como o Dr. Rui Rio. Ao escolher uma aliança com a extrema-direita xenófoba, o PSD isolou-se, mas também mostrou ao PS que, fracassada a ambição da maioria absoluta, só poderá governar se procurar um acordo com a esquerda.".Ou, dito de outra forma: "Não foi agora, mas será. Com a 'cheguização' do PSD, o PS terá sempre de fazer uma escolha essencial: ou procura a direita, mas essa direita já não existe, ou faz um contrato para políticas sociais que façam uma maioria que proteja Portugal.".A aprovação final do OE 2021 confirmou uma separação entre o BE e PS que já vinha da votação na generalidade, em outubro. A votação de 28 de outubro, na generalidade, repetiu-se, ponto por ponto, na votação final global, ontem. O Orçamento passou apenas com os votos favoráveis do PS; o Bloco votou contra, juntando-se assim - embora por motivos diferentes - numa fotografia em que também surgem o PSD, o CDS, a Iniciativa Liberal e o Chega. E todos os restantes se abstiveram: PCP, PEV, PAN e as duas deputadas não inscritas, Joacine Katar Moreira (ex-Livre) e Cristina Rodrigues (ex-PAN)..Saber se o afastamento entre BE e PS veio para ficar ou não é agora a grande dúvida - mas ambas as formações parecem apostadas em não destruir definitivamente as pontes que as ligam..António Costa Pinto, politólogo, antecipa que o corte atual "não é definitivo". E dependerá, para se confirmar - ou não - do "cálculo estratégico"que o Bloco de Esquerda faça. "Dada a partilha muito significativa de eleitorado entre os dois partidos, a dinâmica da relação dependerá essencialmente dos cálculos estratégicos dos dois partidos, sobretudo do mais pequeno.".Certo é, recorda, que já há sondagens que demonstram que o BE perdeu votos com o afastamento face ao PS corporizado no voto contra o OE 2021. Mas também é verdade que "o eleitorado do Bloco de Esquerda está mais à direita do que a comunidade militante do partido" - o que significa que a direção poderá não resistir a romper, ignorando as lições de 2011: o BE ajudou à queda do Governo de Sócrates e perdeu com isso metade dos deputados (passou de 16 para oito), contribuindo além do mais para a ascensão ao poder da maioria PSD-CDS que pôs em prática o memorando da troika. Pode ser isto. Ou então tudo ao contrário..Será que o Bloco estará a comportar-se como aqueles namorados(as) que, para forcarem o casamento com a(o) parceira(o) ameaçam com a separação?.Ontem, no jornal Público, Rui Tavares - fundador do Livre e em tempos compagnon de route dos bloquistas - aventava justamente essa hipótese: o BE não se está a demarcar do PS visando uma rutura, pode, afinal, estar a querer exatamente o contrário..Ou seja: "Este parece efetivamente ser o BE de 2011, mais preocupado com a sua tática de confronto com o PS e tentativa de esvaziamento do PCP do que com as consequências que dessa tática podem advir para o país." Contudo - escreveu - "há outra possibilidade: a de que o Bloco de Esquerda queira assumir uma proposta clara de entrada no Governo e formação de uma maioria absoluta com o PS". Esta - concluiu - seria "uma novidade interessante". Mas só se fosse uma "uma proposta autêntica e não apenas mais um número de teatro político - o que a atuação recente não leva a credibilizar"..Este (eventual) sonho bloquista choca, no entanto, com uma evidência: o pragmatismo pouco dado a sentimentalismos do chefe do PS e do Governo. António Costa, é certo, já disse que gostaria de uma nova geringonça mais formal, no fundo à imagem e semelhança da de 2015 (e fê-lo assumindo que estava a "evoluir" no seu pensamento face à recusa dessa solução depois de ter vencido as legislativas de 2019). E o PS, por outro lado, deu passos em direção ao BE quando reconheceu, através da sua líder parlamentar, haver agora uma "oportunidade histórica" para rever a legislação laboral (o dossiê que cava o fosso entre bloquistas e socialistas). Mas, na verdade, Costa não tem feito finca-pé nessa ideia de nova geringonça; tendo, por exemplo, assegurado com o PCP e o PAN a aprovação do OE 2021, não voltou a falar no assunto, pelo menos de forma audível..Por outras palavras: o primeiro-ministro continua a jogar no mais simples de todos os factos: a aritmética dos resultados eleitorais de 2019 e da relação de forças que se estabeleceu no Parlamento. Há dias, numa entrevista DN/TSF, o ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros recordou isso mesmo: "As eleições de 2019 criaram um novo panorama político no Parlamento. O PS já não precisa de todos os partidos à sua esquerda para que a governação se faça.".Ora, essa é uma mudança substantiva em relação a 2015. Nessa altura, o PS precisava do BE e do PCP para ter a maioria absoluta no Parlamento. Agora se tiver o BE do seu lado pode dispensar o PCP, e se tiver o PCP do seu lado - como teve no OE 2021 - pode dispensar o Bloco de Esquerda..O pragmático António Costa só contemplará reaproximações ao Bloco de Esquerda - e até, eventualmente, casamentos formais que levem os bloquistas para o Governo - se for forçado a isso, isto é, se o PCP deixar de ser um parceiro fiável. Disse-o, aliás, no Parlamento, aos jornalistas, ontem, após a aprovação do OE 2021: "Ninguém pense que nos vai amedrontar com maiorias negativas, maiorias que não convergem para fazer o que quer que seja, maiorias que só convergem para tentar impedir aquilo que estamos a fazer. Isso, meus amigos, não pensem que nos apanham nessa. Se não há cão, haverá gato, mas vamos fazer.".António Costa Pinto não vislumbra que, pelo menos em 2021, este cenário de rutura entre comunistas e socialistas se confirme. No seu entender, os comunistas olham para as próximas eleições autárquicas (outubro de 2021) como "uma estrutura de oportunidade para recuperação eleitoral" - e desde 2016 que o partido tem perdido votos em todas as eleições em que foi a votos (presidenciais, europeias, legislativas, regionais da Madeira e regionais dos Açores). E se de facto quiserem aproveitar essas eleições para isso - recuperando algumas das dez câmaras que perderam em 2017, designadamente o importantíssimo bastião de Almada -, tenderão a manter a atitude que vêm mantendo face ao PS desde 2015: críticas intensas mas nunca a ponto de criarem uma situação de crise política (através, nomeadamente, da contribuição para um chumbo do OE)..No projeto de resolução política que o PCP está a discutir neste fim de semana em Loures, o partido reduziu a perda de dez câmaras em 2017 (de 34 para 24) a um mero "recuo". Aliás, não só desvalorizou esse facto como preferiu salientar que nessas eleições a CDU voltou a ser "a grande força de esquerda no poder local" - representando o resultado um fator de "confiança para a intervenção futura". Já quanto às próximas autárquicas, o PCP afirma que elas deverão ser enfrentadas visando a "consolidação e o reforço da CDU"..A reunião magna dos comunistas começou ontem em Loures e, como se esperava, Jerónimo de Sousa abriu os trabalhos celebrando a capacidade de o partido resistir às pressões que visavam a não realização da reunião. O PCP, disse, "não se dá ao privilégio e ao egoísmo de se resguardar enquanto centenas de milhares de trabalhadores continuam nos seus locais de trabalho" a "resistir à intensificação da exploração" feita a pretexto da pandemia. À "boleia da pandemia vão minando a própria democracia", denunciou - numa repetição, no essencial, do discurso que já tinha feito na Festa do Avante!.