"A única razão pela qual americanos e chineses respeitam a UE é o mercado único"
Antes da vinda a Portugal para o APED Retail Summit 2023, na próxima quinta-feira 30 no SUD Lisboa Hall, Michel Barnier, o ex-ministro francês, ex-comissário europeu e ex-negociador chefe da UE para o Brexit, falou ao DN por Zoom sobre os desafios colocados pela guerra na Ucrânia, a importância do eixo franco-alemão e os perigos da instabilidade em França.
Vem a Lisboa na quinta-feira 30 debater o futuro da União Europeia e dos seus cidadãos. Neste momento, o futuro da UE depende muito do futuro da guerra na Ucrânia. A união que os 27 mostraram perante a invasão russa surpreendeu-o?
Não, porque foi um acontecimento de uma gravidade excecional esta guerra no nosso continente, que atinge um país soberano, amigo, associado. Lembro que temos um acordo de associação com a Ucrânia. Esta agressão russa contra a soberania, contra a liberdade, contra a integridade da Ucrânia, justifica esta solidariedade. Claro que as vozes e os meios de solidariedade merecem e provocam discussões - nem todos têm o mesmo grau de intensidade na solidariedade em termos de armamento, etc. Mas no fim de contas e até agora - fico muito feliz por isto - temos um apoio unânime. Ainda [no passado dia 20], a Comissão Europeia, o alto representante da UE para a Política Externa, Josep Borrell, obteve um acordo dos 27 governos para fornecimento de mais armas e munições de perto de dois mil milhões de euros. Tudo isto é prova de uma verdadeira solidariedade, que não se desmente com o tempo. Porque eles defendem os nossos valores, com as suas vidas. Arriscam as suas vidas - e muitos a perderam - para defender valores que são os nossos, para defender a soberania do seu país.
Já passou mais de um ano desde a invasão russa e as consequências da guerra estão cada vez mais presentes no nosso dia a dia - inflação, etc. Podemos esperar cada vez mais fissuras nesta união dos 27?
A experiência que tenho, como comissário europeu durante dois mandatos - fui comissário encarregue da política regional e depois para o mercado interno - e sobretudo com a questão do Brexit, permite-me dizer que a união dos 27 não cai do céu, não é um acaso, é fruto de uma vontade permanente da Comissão, do presidente do Conselho Europeu, da presidência rotativa também, de cultivar esta união no respeito, ouvindo todas as posições, discutindo. Foi assim que consegui manter a união dos 27 durante os quatro anos - quatro anos! - de negociações do Brexit. E é o que se passa hoje com a guerra na Ucrânia. É preciso estar sempre vigilante, mas cultivar essa unidade, através do respeito, da escuta e das trocas.
Vimos vários países europeus reforçar os seus orçamentos da Defesa depois da invasão russa da Ucrânia. Este conflito, que veio dar nova vida à NATO, pode também fazer ressurgir a ideia de uma defesa europeia, de um exército europeu, que a França defende?
Não é a mesma coisa falarmos de exército europeu ou de defesa europeia. Eu acredito numa defesa europeia. Em primeiro lugar, até, acredito numa política que leve a uma defesa europeia. Mas não acredito na construção de um exército europeu. Conheço bem o que ficou inscrito no Tratado de Lisboa porque esta parte nasceu do trabalho prévio sobre a defesa europeia que fizemos no momento da Constituição Europeia com o grupo de trabalho a que eu presidia. Éramos dois representantes da Comissão Europeia: António Vitorino e eu. Tudo o que está no Tratado de Lisboa é consequência deste trabalho. Não se trata de um exército europeu, trata-se de mutualizar - o que significa respeitar as identidades nacionais, as diferenças nacionais, as soberanias nacionais, por exemplo no campo militar. Mas mutualizamos: juntamo-nos para decidir juntos. E no campo da defesa europeia penso, sim, que a guerra na Ucrânia, a agressão russa, vai continuar a consolidar a NATO, que é o nosso quadro comum de defesa territorial, mas ao mesmo tempo - e é do interesse da NATO - vai consolidar o pilar europeu e os esforços mutualizados em questões de defesa. Para operações no exterior, para evitar redundâncias ou duplicações, para desenvolver programas de investigação conjuntos, para fazer investimentos conjuntos. Isso vai no sentido das iniciativas tomadas por impulso do alto representante Josep Borrell para o fundo europeu de defesa, para o Mecanismo Europeu de Apoio à Paz e para a cooperação estrutural. Portanto, a minha resposta é sim, penso que esta guerra pode levar-nos a ser mais autónomos em várias áreas: energia, alimentação e segurança.
Foi o negociador-chefe da UE encarregue da preparação das futuras relações com o Reino Unido. Três anos depois do Brexit, como vê as consequências e as lições desta saída - para a União Europeia e para o Reino Unido?
Para a UE como para o Reino Unido o Brexit continua a ser um loose-loose game. É um divórcio, que tivemos de gerir e não conheço nenhum exemplo de divórcio que tenha sido fácil. Gerimos o melhor possível este divórcio que os britânicos quiseram. Não fomos nós que quisemos. Não há qualquer valor acrescentado com o Brexit. Nenhum. Para ninguém. A minha preocupação durante toda esta negociação, no quadro do mandato que me tinha sido dado pelo Conselho Europeu, pelo Parlamento Europeu, consistiu em três pontos principais. Em primeiro lugar, defender o mercado interno. Sempre. Nunca aceitar qualquer forma de cherry-picking que os britânicos queriam. Não sei como se diz em português, mas em alemão diz-se querer dançar em dois casamentos ao mesmo tempo, em França dizemos que é "vouloir le beurre et l'argent du beur". No way. Nem pensar. Não é ser vingativo, é simplesmente que o mercado único é o nosso principal trunfo na UE. Para pequenos e grandes países, do Norte ou do Sul, é o principal. A única razão pela qual os americanos e os chineses nos respeitam é o mercado único. São 450 milhões de consumidores e 22 milhões de empresas. Logo, defendi o mercado único e chegámos ao Brexit com um acordo de comércio que é interessante para ambas as partes: nada de tarifas aduaneiras, nada de quotas, mas novos controlos e barreiras não-tarifárias que foram reconstruídas. É este o paradoxo e o lado negativo do Brexit. A minha segunda preocupação foi garantir a paz e estabilidade na Irlanda. E desse ponto de vista fico feliz que o senhor Sunak, o novo primeiro-ministro britânico, tenha um estado de espírito mais responsável e positivo do que os seus antecessores e que tenhamos chegado a um acordo para aplicar, operacionalizar, o tratado que eu negociei. E que tinha de ser operacionalizado nos pormenores e modalidades técnicas. A minha terceira preocupação foi o futuro. Porque o futuro da Europa é muito mais importante do que o Brexit e temos de cooperar com os britânicos de outra forma, no nosso interesse, nas grandes questões globais como as alterações climáticas, a pobreza em África e todas as migrações que vai produzir, a guerra e segurança, a luta contra o terrorismo - uma investigação que Carlos Moedas definiu como prioritária quando era comissário europeu. Estas são algumas questões globais, mas há mais que não podemos enfrentar sozinhos. Por isso temos razões para cooperar com os britânicos.
"Para a UE como para o Reino Unido o Brexit continua a ser um loose-loose game. É um divórcio, que tivemos de gerir e não conheço nenhum exemplo de divórcio que tenha sido fácil. Gerimos o melhor possível este divórcio que os britânicos quiseram. Não fomos nós que quisemos. Não há qualquer valor acrescentado com o Brexit. Nenhum.Para ninguém."
Temos agora um novo acordo sobre o Protocolo relativo à Irlanda do Norte...
Atenção, não houve uma renegociação. O Protocolo, que continua a ser o de base, está dentro do tratado que foi assinado e ratificado. É um acordo internacional. E estavam previstas na altura discussões para operacionalizar e pôr em prática este acordo em pormenor. Foi o que levou muito tempo porque o senhor Johnson não queria negociar, ameaçara mesmo voltar atrás unilateralmente, o que era insano. O senhor Sunak é muito mais positivo e a Comissão Europeia foi ao limite do que podia fazer em termos de flexibilidade para chegarmos a um acordo. Mas não houve uma renegociação, houve sim uma operacionalização. Mas interrompi-a...
Estava a perguntar: nesses quatro anos de negociações do Brexit, qual foi o momento mais delicado?
Não foi um momento, foi um estado de espírito - foi muito longo. Quatro anos. Vimos como os britânicos nos tentavam dividir, como tentavam conseguir o cherry-picking. Foi preciso tempo para que compreendessem que eram eles quem ia assumir as consequências do Brexit. Não éramos nós. A escolha era deles. Saíam do mercado único porque queriam, não eram obrigados. Podiam ficar, como os noruegueses que estão no mercado único sem estar na União. Mas eles quiseram deixar tudo. E precisaram de muito tempo para compreender as consequências. O momento mais duro foi quando Theresa May - por três vezes - não conseguiu obter a aprovação da sua própria maioria sobre o acordo que ela tinha negociado connosco. Por três vezes viu-se perante um voto negativo da sua própria maioria. Depois, saiu, foi empurrada pelo senhor Johnson. Mas é uma mulher corajosa, a senhora May. E o senhor Johnson negociou ele próprio, em detalhe, os dois acordos que negociei em nome da União Europeia. O Brexit político e institucional, incluindo o protocolo irlandês, e, um ano depois, o Brexit económico e comercial - a saída do mercado único.
Com a saída do Reino Unido, o eixo franco-alemão ganhou ainda mais peso, numa Europa confrontada com desafios como o ambiente, a imigração, a transição digital, etc?
Sou militante da cooperação franco-alemã desde o meu primeiro compromisso como Jovem Gaulista. Olhe, veja aqui atrás de mim. Não foi de propósito, mas aqui na parede tenho uma fotografia do Papa João Paulo II, que me recebeu quando eu estava a organizar os Jogos Olímpicos de Albertville, com Jean-Claude Killy, e, logo por cima, tenho uma foto que é muito importante para mim: a do general De Gaulle a receber à porta do Eliseu o chanceler Adenauer em 1963. Esta fotografia é a razão do meu compromisso político pessoal. Graças a esta fotografia tornei-me gaulista e europeu no mesmo dia. E não mudei. Patriota e europeu. Todos devemos ser patriotas, orgulhosos de sermos portugueses ou de sermos franceses, ou espanhóis. Mas ao mesmo tempo europeus. E para além disso, europeus. Não em vez de... além de... Há muito penso que a cooperação franco-alemã é cada vez mais necessária e cada vez menos suficiente. Se os franceses e os alemães não se entenderem, tudo pode ficar bloqueado. É fundamental franceses e alemães se entenderem, mas não chega. Desde 1958, a Europa mudou muito, há outros grandes países, há países médios e muitos pequenos países. E todos têm valor acrescentado. Cada país da União, do mais pequeno ao maior, passando por Portugal e outros, tem o seu valor acrescentado - ao serviço dos outros. É preciso que franceses e alemães trabalhem juntos, mas sem arrogância. Um trabalho inclusivo e não exclusivo.
A guerra na Ucrânia afetou a política de alargamento da UE? Depois da atribuição à Ucrânia e Moldávia do estatuto de candidatas à adesão, podemos esperar um alargamento acelerado, sobretudo aos Balcãs ocidentais?
Não acredito. Há uma aceleração no processo de discussão com a Moldávia e a Ucrânia, acho que é normal. A Ucrânia já tem um acordo de associação connosco, acaba de obter o estatuto de candidata, o que é um estatuto jurídico importante. Mas é preciso pôr em prática o acordo de associação e estar preparados para levar a cabo negociações eficazes, mas não vai haver atalhos. Não é do interesse da Ucrânia, nem da Moldávia, nem nosso. Entrar na União Europeia não é entrar numa zona de comércio livre, é muito mais. É entrar num conjunto político, económico, social. O mercado único não é uma zona de comércio livre, é um ecossistema completo, com expectativas, com regras, com supervisão, regulação, uma jurisdição. Exige tempo, cautelas e preparação. Neste momento temos de consolidar a perspetiva europeia para estes países, inclusive os dos Balcãs, mas não há atalhos.
Num mundo muito polarizado entre Estados Unidos e China, uma União Europeia forte é mais importante do que nunca?
Não só por isso. No mundo em que vivemos, se não estivermos juntos, nós europeus deixamos de existir. Passamos a ser definitivamente subcontratados, sub-influentes, dos chineses e americanos. Somos aliados dos americanos, mas aliança não significa submissão. Somos aliados e estamos felizes de o ser. Temos de modernizar esta aliança, mas temos os nossos próprios interesses. Vemos isso neste momento perante as medidas protecionistas que os EUA estão a tomar. Como é que se responde, como é que resistimos, como é que nos defendemos em relação à superpotência das empresas, dos mercados financeiros, dos gigantes digitais? Como é que exigimos o respeito dos outros? É por isso que temos de ser europeus além de sermos patriotas. Porque, sozinhos, agora, Portugal, a França, mesmo a Alemanha, já não podemos estar sozinhos à mesa. Temos de estar juntos. Portanto sim, para ocupar o nosso lugar, defender os nossos valores e os nossos interesses, neste mundo polarizado entre estas duas superpotências, e para que a Europa exista e consiga enfrentar desafios globais, somos muito mais eficazes juntos do que cada um por si.
Quando está unida, porque no caso, por exemplo, da imigração há posições muito diferentes de país para país...
Vou repetir o que disse há pouco: a união não cai do céu, constrói-se. Na imigração, temos sensibilidades muito diferentes entre os países da primeira linha - Portugal, Espanha, Chipre, Malta, França, Itália, Grécia - e os países que ficam mais longe. Temos culturas diferentes, sensibilidades nacionais diferentes. É preciso muito tempo e paciência mas o objetivo maior é chegar agora a políticas de migração, de asilo, de vistos, de gestão das fronteiras comuns.
" Temos ouvido [Marine Le Pen] falar menos da saída do euro e da saída da UE do que costumava fazer com os seus amigos os senhores [Nigel] Farage ou [Matteo] Salvini há uns anos. Talvez seja uma consequência pedagógica do Brexit. Mas antes de saber o que ela pensa mesmo, prefiro que não se corra esse risco."
A França, o seu país, atravessa neste momento uma forte instabilidade social e política. O governo tem condições para chegar a 2027, data prevista das próximas eleições, apesar dos abalos?
Os abalos estão aí. Eu sou um político francês, pertenço ao partido Os Republicanos, que ficou muito enfraquecido nas últimas eleições. Sou da direita republicana, que trabalha com o centro. Não vou fazer comentários sobre a política francesa, mas digo isto: é preciso estar atento ao que se passa em França. Durante cinco anos geri o Brexit, que foi um acontecimento improvável, mas que aconteceu. Por culpa da UE, porque foi um fracasso da UE, mas também pela força dos populistas e dos nacionalistas no Reino Unido. Em França também há acontecimentos improváveis que podem acontecer. Temos de estar muito atentos. É essencial para evitar aventuras que se reconstrua uma força credível de centro-direita e também uma força credível de centro-esquerda. Ambas foram apagadas, ou fragilizadas, nos últimos anos. É o que posso dizer.
Sem isso arriscamo-nos a ver Marine Le Pen chegar à presidência em 2027 e isso teria consequências para a Europa...
Esse risco existe.
O risco de França sair da UE?
Não sei quais são as segundas intenções da senhora Le Pen sobre esse assunto. Temo-la ouvido falar menos da saída do euro e da saída da UE do que costumava fazer com os seus amigos os senhores [Nigel] Farage ou [Matteo] Salvini há uns anos. Talvez seja uma consequência pedagógica do Brexit. Mas antes de saber o que ela pensa mesmo, prefiro que não se corra esse risco.
dnot@dn.pt