Tajiquistão. Ayni, o inventor da escrita tajique moderna
Mala de viagem (174). Um retrato muito pessoal do Tajiquistão

Quando eu soube que a Casa da Ópera de Duchambé tem um nome de poeta, a minha mente ficou alvoroçada. Talvez semelhante ao que Ary dos Santos sentiu, há precisamente 50 anos, quando soube que havia o "Inteligente" na terminologia da tourada portuguesa e que o levou a escrever, com sarcasmo, a letra da canção homónima, que é uma história comummente contada. Em Duchambé, porém, o nome da Casa da Ópera suscitou-me saber mais e talvez obter desse facto uma história para escrever. A importância do patrono teria de ser muito relevante no contexto das artes (e da política) deste país. Ópera Ayni tem o pseudónimo de um poeta, prosista, jornalista, historiador, escritor, professor, lexicógrafo, crítico literário e político. Ele, Sadriddin Saidmurodzoda, ou Sadriddin Ayni como nome literário, foi um intelectual tajique, hoje considerado um dos grandes escritores do Tajiquistão. No início da sua carreira de escritor e ao afirmar a identidade nacional nos seus escritos, ele conseguiu escapar aos censores soviéticos que silenciaram muitos intelectuais na Ásia Central. Os seus primeiros poemas são sobre o amor e a natureza, mas, após o despertar nacional no Tajiquistão, o seu tema mudou para o alvorecer da nova era e da importância da classe trabalhadora. Para além da poesia, Sadriddin Ayni é conhecido pelo seu romance "Dokhunda" (1930) e pela sua autobiografia, "Yoddoshtho" (1949-1954; publicado em inglês como "Bukhara"). Ayni era bilíngue, escrevendo em uzbeque e tajique. Nasceu em Soktare, na província de Ghijduvon, no emirado de Bukhara, em 15 de abril de 1878. Passou a sua juventude entre Soktare e Mahallayi Bolo. Soktare é uma vila perto do rio Zarafshon, com muito solo fértil e uma grande mesquita conhecida pelos seus exorcistas e curandeiros de oração, enquanto Mahallayi Bolo é uma vila que durante a vida de Ayni se tornaria extremamente pobre e quase deixou de existir. Embora Ayni frequentasse a escola da aldeia anexa à mesquita em Soktare, apenas aprendeu a alfabetização básica na escola feminina que frequentou mais tarde. Deixou escrito que o seu maior ensinamento veio do pai. Apenas na vida adulta ele finalmente aprendeu a ler corretamente. Depois da morte dos pais por cólera, em 1889, Ayni abandonou o seu sonho de infância de estudar em Bukhara e se tornar um poeta, forçado a assumir os campos agrícolas da família para sustentar os seus irmãos mais novos. Porém, a falta de talento para a agricultura e as dívidas contraídas com os funerais dos pais forçaram-no a vender a casa da família em Mahallayi Bolo. Ao visitar uma tia, Ayni conseguiu impressionar um grande estudioso, poeta e professor, Sharifjon Makhdumi Sadri Zia, que por acaso ali estava e o convidou a estudar em Bukhara, um convite que Ayni aceitou. Em Bukhara, Ayni frequentou várias madrassas (escolas árabes), mas sentiu-se sufocado e desinteressado por um ensino religioso limitado e impessoal. À medida que a sua poesia se tornou conhecida nos círculos intelectuais, Ayni foi cada vez mais incluído em reuniões secretas de literatos para discutirem tópicos de literatura, injustiça social e ensino. Após a constituição da União Soviética, em 1917, Ayni mudou-se para Samarkand, então parte do Turquestão soviético, e começou a escrever poesia e música, elogiando a revolução comunista, a que se seguiu a prosa, escrevendo romances. Ele entendia que os intelectuais devessem parar de escrever poesia e se concentrassem em escrever prosa, mais percetível para o homem comum. Mais tarde, ele dedicou-se à tarefa de criar uma nova língua tajique, porque havia uma grande diferença entre o tajique literário e o tajique falado. Ao longo de sua vida, Sadriddin Ayni publicou muitas obras e reformou o sistema de ensino dos uzbeques e dos tajiques. Morreu em 1954 e foi eternizado, designadamente na Ópera da capital, mas também em selos e notas da nova nação. Depois de 1991, ano da independência do país, a sua escrita ajudou a unir a razão pelo nacionalismo tajique, que sobreviveu ao colapso da União Soviética. Este é um país em que os seus escritores, como Sadriddin Ayni, lutaram para purgar a língua tajique, aproximando-a mais da língua persa e eliminando empréstimos árabes. Se a Ópera foi o pretexto para esta história, na capital não se deve perder de vista o Museu Gurminj de Instrumentos Musicais e o Teatro de Marionetas de Duchambé; fora da capital, a não perder são o sítio proto-urbano de Sarazm e o Parque Nacional Tajique, para uma visita mais demorada, ambos inscritos na lista do Património Mundial, pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO).
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Jorge Mangorrinha, professor universitário e pós-doutorado em turismo, faz um ensaio de memória através de fragmentos de viagem realizadas por ar, mar e terra e por olhares, leituras e conversas, entre o sonho que se fez realidade e a realidade que se fez sonho. Viagens fascinantes que são descritas pelo único português que até à data colocou em palavras imaginativas o que sente por todos os países do mundo. Uma série para ler aqui, na edição digital do DN.