Fuga para a vitória?

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27 de novembro de 1807. Perante a invasão das tropas de Napoleão Bonaparte, o rei D. João VI, a família real e grande parte da nobreza partem de Portugal, deslocando a corte - e simbolicamente o trono e o cetro, símbolos do poder - para o Brasil, que fez parte do império português até 1822, quando o seu filho D. Pedro IV, junto ao rio Ipiranga, declarou a emancipação ou independência daquele que é hoje o maior país de língua oficial portuguesa. Durante quase dois séculos, esta retirada da monarquia foi vista como uma fuga, mas os historiadores têm reconhecido a inteligência da manobra que evitou a captura do rei português às mãos dos generais franceses e a perda institucional de soberania.

Poucos anos após o ciclo de ouro e diamantes do Brasil, que criou um fausto ilusório, Portugal foi então ocupado e saqueado e o povo resistiu como pôde. Nos anos seguintes, várias guerras foram travadas, com apoio britânico, até à saída das tropas napoleónicas e ao regresso do rei. No período seguinte, com o país pobre, os príncipes D. Pedro e D. Miguel disputaram a sucessão numa guerra civil. O povo ficou ainda mais pobre e o país ainda mais endividado. Só após a vitória liberal e a ascensão ao trono de D. Maria II, Portugal inicia um período de recuperação económica e social, com apoio da burguesia, com investimento público em áreas essenciais como a educação, a saúde e as infraestruturas.

Neste 27 de novembro de 2021, num contexto de pandemia, de aparente recuperação económica e em vésperas de eleições legislativas e da chegada de milhares de milhões de fundos europeus, qual o sentido desta evocação histórica, dois séculos depois? Não estamos perante uma invasão estrangeira, é certo, mas vale sempre a pena recordar que a história dos povos e da economia é feita de ciclos, de altos e baixos, de avanços e recuos, de disputas de poder e da imagem que devemos ter presente, criada por Camões, no século XVI, através do velho do Restelo: "Ó glória de mandar! Ó vã cobiça desta vaidade a que chamamos fama!"

As eleições legislativas de 30 de janeiro de 2022 (ano que assinalará dois séculos da independência do Brasil) e a disputa eleitoral interna do PSD devem servir para uma reflexão, que vá além da camoniana vã glória de mandar, pois não devemos ter ilusões quanto aos novos cofres de ouro e diamantes da Europa e ao destino a dar a esses fundos, uma década depois da entrada da troika em Portugal, num contexto de pré-bancarrota nacional na longínqua primavera de 2011. Os ciclos económicos e políticos que a história nos dá a conhecer podem merecer hoje maior atenção, antes das próximas semanas de ataques, rasteiras, promessas, abraços (mesmo de máscara), para evitarmos abismos a médio prazo, quando a carruagem lusa é a quarta a contar do fim no comboio de 27 da União Europeia, no que respeita à competitividade da economia.

Em dezembro ou em janeiro, a saída (ou fuga) de um ator político atual (Rio, Rangel ou Costa?) pode não significar o seu fim político ou do seu partido, mas, como a vida é feita de ciclos, os portugueses sabem que vivemos tempos de mudança, incerteza e instabilidade, mesmo que iludidos - a curto prazo - pelas luzes e promoções natalícias. Reconquistar o país significa apresentar ideias de verdadeira regeneração, um propósito verdadeiramente político e não um panfleto partidário e devolver esperança a quem deixou de acreditar ou quem, nas empresas ou nos lares, está realmente a contar cêntimos para sobreviver ao aumento brutal do custo da energia e das matérias-primas em geral.

O povo quer pão, quer futuro para os seus filhos, quer um país que crie riqueza, trabalho e menos dívida. O povo - o mesmo que viu partir D. João VI, viu chegar D. Pedro IV, viu cair a monarquia e vive há quase cinco décadas em democracia republicana - dispensa fantasias, por mais que alguns políticos ainda julguem que basta uns malabarismos e umas encenações, mesmo em plena quinta vaga da pandemia, para obter a vã glória de mandar ou uns minutos de fama. Estejamos atentos aos populismos, de direita ou de esquerda, e foquemo-nos nas ideias que realmente podem mudar e regenerar esta nação.

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