Cinematograficamente, eis uma vida invulgar. Tudo começou com a primeira longa-metragem, Cães Danados, um dos acontecimentos emblemáticos do Festival de Cannes de 1992: uma estreia exuberante, com ligação direta à tradição do cinema noir, ao mesmo tempo revelando a agilidade de um argumentista perito em diálogos de surpreendente dramatismo e ironia..Tais qualidades valeram-lhe dois Óscares, ambos na categoria de argumento original. O primeiro, partilhado com Roger Avary, distinguiu o seu trabalho em Pulp Fiction, já depois da consagração com a Palma de Ouro de Cannes, em 1994 -- continua a ser o filme que lhe serve de "bilhete de identidade" junto de espectadores de todo o mundo --; o segundo diz respeito a Django Libertado (2012), outro exemplo da sua ligação à herança dos géneros mais populares de Hollywood, neste caso o western..Tarantino merece a mais clássica das definições: um cinéfilo. E no sentido mais primitivo: ele é um amante do cinema, cada filme que faz reflete a consciência de que há um passado artístico e industrial que marca a sua condição de espectador. Devemos, aliás, sublinhar esta palavra -- espectador --, obviamente anterior aos seus trabalhos como realizador. E tanto mais quanto a formação de Tarantino como espectador tem tanto de objetivo como de lendário, para não dizer surreal..A riqueza e sofisticação da sua memória do cinema enraíza-se num período (primeira metade da década de 80) em que trabalhou num clube de vídeo de Manhattan Beach, no sudoeste da região de Los Angeles. Aos clientes, surpreendidos com a amplitude do seu know-how, que lhe perguntavam onde tinha estudado cinema, ele gostava de dizer: "Não frequentei a escola, frequentei os filmes.".Recentemente, pudemos perceber que há um período fundador da história de Tarantino cinéfilo, envolvido numa intensa dimensão afetiva e familiar. Assim, o seu livro Cinema Speculation, lançado em novembro de 2022 (Harper, Nova Iorque), é em grande parte a evocação de uma infância e adolescência vivida na ausência do pai (o ator Tony Tarantino, que abandonou a família ainda antes do nascimento de Quentin), com uma mãe que sempre manteve uma vigilância muito liberal na relação do filho com o cinema..Na prática, ele viu na época dos respetivos lançamentos filmes tão adultos como A Fúria da Razão (1971), de Don Siegel, o primeiro título do inspetor da polícia Harry Callahan interpretado por Clint Eastwood, ou Fim de Semana Alucinante (1972), uma parábola trágica sobre a natureza, com assinatura de John Boorman. Dito de outro modo: o jovem Tarantino cresceu, como espectador, a descobrir um cinema americano em ebulição, por um lado reconvertendo os géneros clássicos, por outro lado refletindo as convulsões geracionais e políticas de uma década de profundas transformações sociais. Recorda o escritor/cineasta que a mãe lhe dizia que não tinha problema que ele visse filmes com óbvias componentes de violência, a não ser que pudesse não "perceber o contexto em que a violência se manifestava". Daí dois títulos interditos na altura da estreia, em 1973: O Exorcista, de William Friedkin, e Frankenstein, de Paul Morrissey/Andy Warhol..A atividade de Tarantino como argumentista está ligada a todos os seus filmes, incluindo na relação com outros autores -- recorde-se que Jackie Brown (1997) parte do romance Rum Punch, de Elmore Leonard. Aliás, é dele também o argumento de True Romance, escrito ainda antes de Cães Danados: vendeu-o à Warner Bros. para poder financiar, precisamente, a sua primeira realização. True Romance acabaria por ser dirigido por Tony Scott, em 1993, com Christian Slater, Patricia Arquette e um ainda pouco conhecido Brad Pitt (entre nós recebeu o título de Amor à Queima-Roupa)..Aparentemente, a escrita de livros está, a pouco e pouco, a consolidar-se como uma via "alternativa" para Tarantino -- recorde-se que, um ano antes de Cinema Speculation, ele tinha publicado a versão, em romance, de Era Uma Vez em Hollywood (2019), a sua nona longa-metragem (o livro está disponível em tradução portuguesa com chancela da Porto Editora). Tem mesmo declarado que, com o avançar da idade, faz sentido parar quando tiver realizado uma dezena de filmes. Entretanto, há cerca de 15 dias, no site da revista The Hollywood Reporter, ficámos a saber que a 10.ª longa-metragem de Tarantino terá como título The Movie Critic..Especula-se que o "crítico de cinema" que o título refere deverá ser uma personagem feminina, possivelmente inspirada em Pauline Kael (1919-2001), figura tutelar da crítica cinematográfica nos EUA, colaboradora da revista The New Yorker entre 1968 e 1991 -- em qualquer caso, Kael sempre foi uma referência importante para o autor de Pulp Fiction, sendo várias vezes evocada em Cinema Speculation. Será o filme final? Uma coisa é certa: Tarantino tem dito que gostaria de se dedicar a outras atividades, incluindo séries televisivas e encenações teatrais....dnot@dn.pt