"Vai para a tua terra" e outras "políticas de identidade"
É mato dizer-se que a obsessão da esquerda com as "políticas da identidade" abriu caminho aos trumps da vida. E não é exclusivamente uma afirmação de direita: também à esquerda vemos muita gente a bater nessa tecla, enquanto, tal como parte da direita, verbera aquilo a que dá o nome irritante de "politicamente correto" e o que alega serem "excessos" das reivindicações de grupos, lá está, "identitários" que estariam a fazer esquecer as "verdadeiras desigualdades" - que, informam, são e serão sempre as económicas.
É um debate cansativo - muito - e cheio de armadilhas e de circularidades, mas vamos lá. E a primeira armadilha é a de saber o que é e como se forma uma identidade coletiva, e porque é que umas identidades coletivas são taxadas de "identitárias" e outras não. Comecemos por exemplo, já que falamos da esquerda, com uma frase célebre: "Proletários de todo o mundo, uni-vos".
Ser proletário, parece, é uma identidade, certo? E uma identidade que deve levar, de acordo com o apelo contido naquela frase, a que todos os que se identificam assim se unam, para, claro, lutar pelos seus direitos. Claro que um proletário pode deixar de o ser - pode enriquecer, tornar-se explorador e trair a sua classe de origem (seguindo o sentido do postulado) - mudando assim de grupo e de identidade. Por que motivo, então, nunca usamos a expressão "política identitária" quando referimos a luta dos chamados assalariados, ou a luta sindical? Porque se refere a circunstâncias económicas e sociais e não a algo que, digamos assim, defina as pessoas de uma forma mais indelével? Ou porque "os trabalhadores" são uma maioria e portanto a expressão que foi cunhada para denominar lutas de minorias - ou dessa maioria desconsiderada que são as mulheres - não parece aplicar-se-lhes?
Haverá vários motivos. Mas talvez esta distinção tenha sobretudo que ver com o facto de a existência de um proletariado, ou seja, das "massas de trabalhadores assalariados", se ter estabelecido como uma realidade, ninguém colocando em causa as condições específicas que os identificam e há muito se aceitar o seu direito a mobilizarem-se na sua própria defesa, falando "em nome de" (um direito que, de resto, teve de ser arduamente conquistado) e "contra" aqueles que são designados como exploradores - os capitalistas. Como se os proletários, ou, em linguagem mais atual, os "trabalhadores" fossem uma espécie de "sangue azul" das políticas de identidade - detentores de um privilégio "natural", o de se organizarem como grupo e serem reconhecidos como tendo "razões de queixa" e capital reivindicativo, desenvolvendo uma luta "fundamentada".
E, ao contrário do que se sustenta sobre outros "grupos identitários", a evidência de que este surgiu também como reação e em oposição a outro - o dos proprietários, ou capitalistas, ou patrões - e para combater o seu domínio e poder não leva ninguém a considerar que criou "reações" perversas. Por exemplo, ninguém diz que "só há tentativas de retirar direitos aos trabalhadores" porque eles se organizaram para os reivindicar, e que isso fez os patrões sentirem-se "acossados". E decerto ninguém diz que foi a luta dos trabalhadores que criou os patrões. Não: toda a gente percebe que se trata de um processo em que há interesses contraditórios em confronto e que havia (e continua a haver) um lado mais forte e outro mais fraco.
Por que raio, então, este tipo de lógica - a de que reivindicar direitos "levanta demónios"- é aplicado a outros grupos? São vários os motivos. Um é de que há quem considere que esses grupos não têm motivos sérios de luta; que estão a exagerar, que não são realmente sujeitos a opressão, discriminações ou injustiças, e portanto as suas reivindicações não têm fundamento; que existe uma vitimização fabricada que mais não visa do que "inverter" as relações de poder denunciadas e portanto querendo na verdade estabelecer uma supremacia.
Um caso clássico da aplicação desta visão é o dos judeus: apesar de ser historicamente indesmentível (o que não impede, bem entendido, que haja quem o desminta) tratar-se de um grupo perseguido e cuja identidade foi, se não criada - a definição do que é um judeu foi variando ao longo da história, misturando identidade religiosa, étnica e cultural -, reforçada pela perseguição, a narrativa de que "os judeus", como plural, "é que não se querem integrar", "são muito racistas" e "culpados da sua própria discriminação" nunca deixou de existir mesmo no pós-Holocausto.
O exemplo dos judeus é particularmente interessante porque entre os maiores denunciantes do "politicamente correto" e das "políticas de identidade", ou seja, na extrema-direita, há visões opostas sobre a legitimidade do respetivo combate identitário (e o mesmo, diga-se, se aplica à esquerda). Há fações da extrema-direita que enquanto atacam determinadas "políticas de identidade" - as reivindicações dos negros, ou das mulheres, ou dos grupos LGBT - reconhecem o direito dos judeus a uma voz de grupo e a um cuidado especial.
Ou seja: aquilo que se aceita e até promove para uns grupos com base num historial de perseguição recusa-se terminantemente para outros. Em Portugal, a lei que em 2015, proposta por PSD e CDS, conferiu nacionalidade a quem prove ser descendente de judeus expulsos no século XVI por decreto régio é evidência do acolhimento de uma "política de identidade" que não só admite a vitimização dos judeus e uma culpa nacional (e portanto a necessidade de reparação) como permite, pelo menos na divulgação da medida, um entendimento de judeu por linha de sangue que é afinal eminentemente racialista.
Aprofundando o paradoxo: ao decretar para os descendentes de judeus expulsos a nacionalidade portuguesa, o país está simultaneamente a propor-se "emendar" a discriminação do passado, afirmando a pertença daquele grupo à "nacionalidade portuguesa", e de algum modo a certificar-lhe a existência como "grupo separado". Interessante que se aceite isto com tanta facilidade (ninguém se opôs à medida) e se arrepelem cabelos ante a possibilidade de uma autoidentificação étnica, como medida operativa, no Censos. E basta imaginar o que seria a reação, na sociedade portuguesa, à proposta de uma medida similar à da lei de 2015 atribuindo nacionalidade a quem provasse ser descendente de ciganos expulsos do país (houve vários decretos nesse sentido desde 1538) ou de escravos traficados sob a bandeira portuguesa para perceber como é diversa a compreensão e aceitação daquilo a que se deu o nome de "políticas de identidade" consoante as identidades de que falamos, o reconhecimento que lhes conferimos e o lugar ideológico onde nos situamos.
Fixar medidas de reparação para judeus é "justiça", mas tentar perceber quantos negros e ciganos há no país para, cruzando esses dados com outros, aferir o nível de discriminação de que são alvo é ceder às "políticas de identidade" e correr o risco de "efeitos perversos" ao "sublinhar diferenças raciais"?
São estes diferentes pesos e medidas que estão na génese da utilização pejorativa da expressão "política de identidade". Elide-se assim a evidência de que a política de identidade original é a que "designa", a que, como na narrativa bíblica, expulsa do paraíso da igualdade. É a que diz a alguém, com base na sua cor/etnia, "vai para a tua terra" ou "fora daqui" ou, com base na sua orientação sexual/identidade de género, "não podes existir", ou, com base no seu género, "és inferior", em suma, a que diz: "Não és igual a mim nem nunca serás", porque a tua natureza e a minha são diferentes.
É esse o pecado original - aquele que estabelece uma norma, um neutro, um lugar de sentido total que ordena o mundo e o lugar dos outros nele, uma hierarquia de poder em que uns podem falar e os outros devem calar. A expressão "política de identidade" e a forma como tem sido utilizada é mais uma manifestação desse silenciamento - agora com o twist perverso da culpabilização, que não é mais que o velho "não respondas que é pior".
Nota: Texto alterado às 10.10 de 30 de julho, para retirar a autoria atribuída da frase "proletários de todo o mundo, uni-vos", erroneamente atribuída a Lenine. A frase figura no Manifesto Comunista, de Marx e Engels, de 21 de fevereiro de 1848, na versão "proletários de todos os países, uni-vos" mas seria já utilizada anteriormente por variados movimentos.