A querida K7

Lembra-se dela? Se não, descubra essa maneira tão simpática de ouvir música e que, dizem, está querendo voltar.
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Parece complicado, mas era muito simples. Tão simples que até eu, um notório fiasco em tecnologia, sabia manejá-la. Tratava-se de uma caixinha de plástico, do tamanho de uma carteira de cigarros, só que mais fina. Continha dois pequenos carretéis de fita - esta, de cerca de 40 milímetros de largura, passava de um carretel para outro -, nos quais vinham impressos 60 minutos de música gravada. Enfiava-se essa caixinha num aparelho, apertava-se a tecla play e a música saía pelas caixas de som. Se, por qualquer motivo, precisássemos de interromper a audição antes que ela chegasse ao fim, havia a tecla pause. Na volta, bastava acionar de novo a tecla play, e a música era retomada no ponto onde havia parado. Podíamos também comprar essa mesma caixinha com fita virgem, com 60 ou 90 minutos, para gravar as músicas que quiséssemos - tiradas dos nossos LP, digo, vinis -, acoplando o aparelho ao gira-discos e apertando ao mesmo tempo as teclas play e rec. Esta caixinha era, naturalmente, a querida fita cassete. Ou K7, para os íntimos.

Todo mundo tinha K7. Era uma mídia amiga, leal, confiável. Podia-se ouvir uma K7 em casa, de pantufas, enquanto se tomava um uísque. Podia-se ouvi-la no carro, porque todos os modelos tinham uma abertura para ela no painel. E, a partir dos anos 1980, podia-se ouvi-la na praia, no campo ou andando pela rua, através de um aparelhinho que se acoplava às orelhas, chamado walkman.

Quando vi uma K7 funcionando pela primeira vez, em fins de 1967, ela tinha sido inventada havia pouco pelos holandeses, e esta primeira vez não poderia ter sido mais emocionante. Eu morava no Solar da Fossa, uma espécie de república, em Botafogo, aqui no Rio. Era um reduto de jovens românticos, boémios e contestadores, quase todos jornalistas, artistas plásticos ou músicos. Um de seus moradores, até há bem pouco, tinha sido Caetano Veloso, que às vezes ainda aparecia por lá, para rever os amigos - entre os quais uma menina chamada Gracinha, que, um ano depois, ficaria famosa como Gal Costa. O próprio Caetano só então estava ficando famoso, por sua marchinha Alegria, alegria, que acabara de fazer escarcéu num festival da canção.

Num fim de tarde, ao voltar do trabalho, um colega do Solar, o desenhista Rogério Duarte, chamou-me para me mostrar algo. Era o seu desenho para a capa do LP que Caetano acabara de gravar, apresentando um novo tipo de música que - fiquei sabendo por Rogério - se chamaria tropicalismo. Gostei do desenho, em estilo "psicadélico", típico da época, cheio de vermelhos e amarelos, com bananas e dragões emoldurando um espaço oval onde entraria a foto do cantor. E, então, Rogério enfiou a tal caixinha num aparelho, acionou a tecla play e dela saiu a voz de Caetano: "Sobre a cabeça, os aviões/ Sob os meus pés, os caminhões/ Aponta contra os chapadões, meu nariz/ Eu organizo o movimento/ Eu oriento o Carnaval/ Eu inauguro o monumento/ No planalto central do país." Era Tropicália, do próprio Caetano. A letra não fazia muito sentido, mas a música era de grande força, ainda mais com o poderoso arranjo e instrumentação de meu futuro amigo, o maestro Júlio Medaglia. O que eu estava ouvindo naquele momento era uma prévia em K7 do disco que só dali a três meses chegaria às lojas e revolucionaria a música brasileira.

Bem, tempos depois, comprei meu primeiro aparelho de K7 e comecei a gravar fitas para mim mesmo, tiradas de discos que não possuía e pedia emprestado aos amigos, ou fitas para os amigos, com uma seleção de faixas que achava que iria agradá-los. E me parece que agradavam, porque devo ter feito quase mil fitas que ofereci a pessoas em três ou quatro continentes pelos dez anos seguintes. Às vezes, tantas décadas depois, ainda encontro algumas dessas pessoas, que me falam das fitas e de como as escutam até hoje, convertidas em CD.

Em 1973, quando fui morar em Lisboa, o tráfico de K7 pelo correio, entre mim e amigos no Brasil, deve ter entupido o espaço aéreo entre os dois países pelos três anos que passei aí. Eles me mandavam as últimas novidades da música brasileira e eu lhes mandava cantores que eles não conheciam - um deles, Alfredo Marceneiro, que eu ouvira cantar em pessoa numa quinta perto de Lisboa, em 1973, quando ele já tinha 82 anos e continuava maravilhoso (morreria nove anos depois, aos 91).

Uma das vantagens da K7 era sua quase indestrutibilidade. A não ser que você se descuidasse e a botasse para tocar sem que a fita estivesse esticada - e, nesse caso, ela seria "mastigada" pelo aparelho e se inutilizaria -, uma K7 poderia durar talvez para sempre. E, pelo facto de a fita ser tão estreitinha, não havia espaço para que o mofo se instalasse - ao contrário dos futuros videocassetes, que mofavam com facilidade. Pensando bem, a única maneira de destruir uma K7 era atirando-a ao chão e pisoteando-a com botas de lenhador, como um possesso. Posso garantir isto, porque sempre cuidei bem das minhas K7 e ainda possuo algumas de meus tempos em Lisboa - há 45 anos.

As gravadoras de discos, no começo, viam a K7 virgem como um inimigo, porque se podia copiar nela um LP inteiro - o que representava um LP a menos que se vendia. Mas, ao copiar um LP em K7, o que resultava? Uma cópia de um LP em K7 - sem comparação com o lindo LP original. Não era possível copiar domesticamente um LP e produzir outro LP. Isso só aconteceu, muito depois, com o CD, quando se criaram as máquinas de copiá-lo. Ao copiar um CD, produzia-se um novo CD. Tirava-se uma cópia em Xerox do encarte, comprava-se um invólucro de plástico para enfiá-lo e pronto: tinha-se um CD igual ao da loja - e que também podia ser duplicado às dezenas. E quem fabricava esses aparelhos de copiar CD? As mesmas empresas que produziam os CD. Não admira que tenham se extinguido.

Por volta de 1995, quando o vinil foi derrotado e substituído pelo CD, a K7 perdeu o sentido. Deixaram de fabricá-la e, hoje, nenhum menor de 30 anos jamais viu um. Há tempos, me disseram que ela iria voltar - assim como o vinil, que, também declarado morto, estava voltando gloriosamente. Fiquei contente de saber, mas, até hoje, não sei de ninguém que tenha voltado a usá-la.

Eu próprio nunca voltei. Mas, no meu caso, só porque nunca deixei de usá-la.

Jornalista e escritor brasileiro, autor de Chega de Saudade - A História e as Histórias da Bossa Nova (Tinta-da-China).

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