Novo ciclo político – um desafio e um impasse
1. As eleições presidenciais abriram um novo ciclo político. Um novo ciclo gera, em regra, uma nova esperança. Receio bem que desta vez seja diferente. Temo que, a somar à pandemia e à crise económica e social, possamos cair na tempestade perfeita. Acrescentando a estas duas crises o risco da ingovernabilidade política.
Daqui até às próximas eleições legislativas, o país vai continuar a marcar passo. Nada de importante e estrutural vai acontecer. E não é só por causa da pandemia. É porque o Governo está sem força, sem autoridade e sem norte. Numa degradação irreversível, que já nem uma remodelação conseguirá inverter.
O problema mais sério ainda é que em próximas eleições legislativas a situação só tende a piorar, gerando graves bloqueios. A ameaça de ingovernabilidade, à esquerda e à direita, espreita com grande crueldade. Na política não há soluções milagrosas. Ou há uma maioria estável e coerente e consegue-se um governo forte, ou não há e os governos são fracos. É o que sucede no presente. É o que se pode agravar no futuro.
À esquerda, sem uma maioria absoluta monopartidária de todo imprevisível, até pode continuar a haver uma maioria de votos e deputados, mas não haverá um mínimo de coerência para governar, porque não há entendimento em relação a qualquer uma das políticas fundamentais para o país. Tal como já hoje sucede. A plataforma política que sustenta parlamentarmente o Governo é disso um exemplo eloquente - o seu maior denominador comum é nada reformar e nenhuma mudança estrutural concretizar. É tudo táctico, tudo avulso, tudo pontual, tudo conjuntural. Ocupa-se o poder e faz-se a gestão do dia-a-dia. Até se pode assegurar a estabilidade formal e evitar crises politicas. Mas não se garante um Governo forte, uma acção reformadora e a transformação do país. A economia e a sociedade pagam a factura.
À direita, o problema é diferente, mas não menos grave. Provavelmente nem governo alternativo, muito menos governo forte. A pulverização partidária a que recentemente assistimos dificulta, e muito, a construção de uma alternativa maioritária, estável e coerente. Um CDS perigosamente em estado de coma, um Chega em preocupante ascensão meteórica, um PSD em risco de mudar a sua natureza - passando de grande partido para partido médio, com a agravante da percepção de uma potencial aliança com a direita radical - tudo são ingredientes que não favorecem a governabilidade. Aqui, não temos um, mas dois dramas ao mesmo tempo. O drama da dificuldade em obter uma maioria de deputados. Há anos que os partidos à direita do PS, todos somados, praticamente não ultrapassam nas sondagens o resultado da PAF de Passos Coelho e Paulo Portas. E o drama de uma maioria, caso exista, não ter coerência e solidez para poder governar e reformar. Juntar PSD e Chega numa qualquer plataforma governativa é, no plano da coerência, naufrágio anunciado.
Governo forte, à esquerda ou à direita, é cada vez mais uma miragem. Em modo de desespero, ainda vamos ver muito boa gente a invocar soluções miríficas ou ideias sebastiânicas - tipo governos presidenciais - que simplesmente não existem. São pura ficção científica. Outros, em nome de um populismo anti-sistema, acenarão com o presidencialismo e a necessidade de presidencializar o regime. São os pesadelos que nos esperam se não formos capazes de vencer o impasse da governabilidade. Convém pensar nisso a sério. É que são estes impasses e as suas consequências económicas e sociais que geram o descontentamento donde se alimenta o populismo. O resto é fantasia.
2. Mais grave do que o impasse é o momento em que ele surge. Justamente quando Portugal mais precisa de mudar de vida e de ter um Governo forte. Precisamos ardentemente de começar a fazer o que é importante e não apenas o que é urgente. Há duas décadas que passamos o tempo a fazer o que é conjunturalmente urgente - tapar buracos e aplicar remendos. As duas únicas medidas de fundo que nos últimos anos vieram para ficar ou surgiram por imposição da troika - a preocupação com a saúde das contas públicas - ou por iniciativa das empresas - o forte impulso às exportações a partir de 2012. Em tudo o que dependia da acção do poder político, o país falhou. Mal ou bem, fez o que era urgente. Desastrosamente, negligenciou tudo o que era importante. As consequências aí estão: no ano 2000 éramos o 16.º país no ranking da União Europeia; em 2019 já estávamos na 21.ª posição; pelo andar da carruagem, corremos o risco sério de em 2025 - apenas daqui a quatro anos - nos situarmos entre os cinco países mais pobres da União Europeia. Um susto!
Claro que urgente, no imediato, é acabar com a pandemia. Mas importante, em termos de futuro, é a mudança estrutural do país. Portugal precisa de ter o que há anos não tem - um novo modelo de desenvolvimento, um programa ambicioso de crescimento e de competitividade, uma estratégia de mobilização colectiva. Esse é o grande desafio nacional. Se o país continuar com um crescimento medíocre, vai confrontar-se com consequências sérias - a sua irrelevância económica na Europa e a sua descredibilização política interna.
Mudar estruturalmente para crescer com ambição não é uma questão de semântica. É uma questão de coragem e visão estratégica. Precisamos de uma política nova, inteligente e saudavelmente agressiva de atracção de investimento estrangeiro, porque nos escasseia o capital nacional; precisamos de um sistema fiscal realmente competitivo, capaz de ajudar a alavancar o investimento e desenvolvimento; precisamos de, até ao limite da flexibilidade europeia, explorar todas as hipóteses de incentivar as exportações nacionais, porque esse é o caminho do crescimento sustentado; precisamos de perceber que, a bem da produtividade e da competitividade, é imperioso ajudar as empresas a melhorarem a sua gestão, colmatando o défice que ainda existe; precisamos de perceber que a Justiça precisa de um choque de gestão, porque nos tribunais há que distinguir entre as funções jurisdicionais que cabem aos magistrados e as funções operacionais e de gestão que deviam ser remetidas a outros profissionais; precisamos de uma Administração Pública que seja no futuro o que a Autoridade Tributária é hoje - moderna, eficiente, operativa e eficaz; precisamos de uma política inteligente e pró-activa de atracção de imigrantes porque eles são, no quadro demográfico em que nos movemos, elementos decisivos para o nosso processo de desenvolvimento; precisamos de lançar uma nova geração de políticas económicas estruturais, sob pena de o combate a outros problemas sociais sérios, com o drama da pobreza infantil à cabeça, continuarem adiados por falta de meios, envergonhando a nossa consciência colectiva. Afinal, sem crescimento ambicioso, perde-se a dimensão social do desenvolvimento. Só que para ter crescimento ambicioso é preciso haver condições de governabilidade. O problema é político. A consequência é económica e social. Trocar a ordem dos factores não é boa solução.
3. Neste quadro, a única boa notícia é a reeleição de Marcelo Rebelo de Sousa. O Presidente teve uma grande vitória. Uma vitória eminentemente pessoal. Com um resultado transversal e impressionante. Dificilmente, no futuro, um candidato presidencial de direita ou de esquerda conseguirá aproximar-se sequer deste resultado. Marcelo reforça o seu poder na sociedade. É a grande válvula de segurança do regime. E agora? O Presidente vai ser igual ou diferente do que foi no primeiro mandato? Julgo que as duas coisas ao mesmo tempo - igual nos princípios, diferente face às circunstâncias.
Igual nos princípios significa prosseguir a matriz orientadora do seu primeiro mandato: responsabilidade, proximidade e independência. Ser um Presidente responsável e não aventureiro; um Presidente afectivo e próximo dos cidadãos; um Presidente independente porque não comete o suicídio de ser Presidente de facção, líder da oposição ou representante de apenas uma parte do país.
Igual nos princípios, o Presidente terá de ser, todavia, diferente perante as novas circunstâncias da vida nacional. E diferente significa ser mais interventivo, mais liderante e mais federador, porque as circunstâncias a tal obrigam. Não é tanto uma questão de opção pessoal ou política. É muito mais uma questão de estado de necessidade.
Desde logo, por causa da crise pandémica em descontrole. Descontrole da pandemia e descontrole do seu combate. Este Governo é bem-intencionado, mas não nasceu para lidar com crises graves e profundas. A seguir, por força da crise económica e social que vai ser prolongada. Em consequência, a sociedade voltará inevitavelmente a crispar-se e a radicalizar-se. Do Presidente o país exigirá acção e intervenção, capacidade de unir, congregar e mobilizar. A seguir, pelo drama da estabilidade. O Governo está cada vez mais em modo de fim de ciclo, desgastado, cansado e dividido, embora o fim possa ser demorado, como foi o do cavaquismo. Mas o gérmen da potencial instabilidade espreita ao dobrar da esquina. Na precariedade do apoio parlamentar ao executivo e na ausência de uma putativa alternativa. O que obriga o Presidente da República a "trabalhos forçados".
Sem esquecer, finalmente, que ao Presidente, a qualquer Presidente, cabe liderar o debate dos grandes temas nacionais. Os que são realmente importantes e estruturantes, aqueles cuja influência vai para além da espuma dos dias. Convém, porém, não esquecer uma verdade inelutável - por mais talentoso que seja, um Presidente não faz milagres. E não se substitui aos partidos. É bom ter os pés bem assentes na terra. Ter esperança, sim. Criar falsas ilusões, nunca.
Escreve de acordo com a antiga ortografia