Guerra interna paralisa Santa Casa da Misericórdia
As águas estão agitadas na Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML), instituição com elevada responsabilidade social. O clima é de declarada guerra interna, com o provedor Edmundo Martinho cada vez mais isolado.
Desde que João Pedro Correia, que ocupava o cargo de vice-provedor e tinha sob a sua alçada o departamento de jogos sociais, bateu com a porta, há quase ano e meio, que a instituição de utilidade pública iniciou uma espiral de desintegração. A Mesa (administração da SCML), que deveria ser composta por seis elementos, mas onde têm atualmente assento cinco, tem dois administradores sem mandato e um terceiro está prestes a terminar o seu tempo executivo.
A situação é muito crítica e levanta sérias dúvidas quanto à legalidade das decisões que são tomadas. "Pode haver impugnação das deliberações", diz fonte próxima da instituição ao Dinheiro Vivo.
Contactado repetidas vezes, o Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social (MTSSS), liderado por Ana Mendes Godinho, que tutela a instituição, não se pronuncia.
Edmundo Martinho, que foi nomeado provedor em 2017, numa escolha do então ministro José Vieira da Silva, "está sem condições para exercer o mandato", apontam as mesmas fontes. A Mesa irá, no fim de abril, reduzir-se a dois elementos efetivos, quando terminarem as funções de Filipa Klut. A administradora com o pelouro da Cultura e Assuntos Jurídicos juntar-se-á assim a Sérgio Cintra, cujo mandato à frente do Departamento de Ação Social e Saúde terminou há sensivelmente um ano, e Maria João Mendes, responsável pela área de Recursos Humanos, sem poderes efetivos há seis meses.
Ficará então apenas o provedor, que assumiu a administração dos jogos sociais com a saída de João Pedro Correia, e Ana Vitória Azevedo, responsável pelo património. Contactados, Santa Casa e o provedor também não responderam às questões do DV.
Apesar deste crescente vazio, o MTSSS, a quem cabe nomear o vice-provedor e os vogais ou renovar os mandatos, não exerceu até agora nenhuma ação. Os administradores continuam em funções, mas sem recondução efetiva. "O risco é a Mesa ficar sem quórum para aprovar decisões e a SCML entrar em gestão corrente", avisam as mesmas fontes.
Neste cenário, abriu-se também uma guerra entre o provedor e Sérgio Cintra. Perspetivas distintas da estratégia para a Santa Casa e divergências de opiniões têm pautado o relacionamento. E pelo meio há quem aponte uma luta de fações dentro do PS. Edmundo Martinho é um homem da confiança de Vieira da Silva (que, diz-se, esmoreceu quando José Pedro Correia abandonou a casa) e de Ana Catarina Mendes, ministra Adjunta e dos Assuntos Parlamentares. Já Cintra será muito próximo de Duarte Cordeiro, ministro do Ambiente e da Ação Climática.
"Há já uma expectativa de quando é que isto vai cair. A casa está numa espiral muito complicada", sublinham as fontes ouvidas pelo DN/Dinheiro Vivo.
A ministra do Trabalho não recebe o provedor e também ainda não aprovou o relatório e contas do exercício de 2021. A SCML divulga todos os anos os números da atividade, por razões de transparência. Mas até agora, fevereiro de 2023, ainda não é conhecida a performance económica da Santa Casa e dos jogos sociais, a principal fonte de financiamento da instituição, relativa a 2021.
Em 2020, fruto da pandemia, as vendas brutas dos jogos sociais atingiram os 2768 milhões de euros, menos 17,6% (ou 591 milhões) do que no exercício de 2019, o que gerou um resultado a distribuir pelos beneficiários de 608 milhões, uma descida de 20,5%. "São sinais políticos" para a saída do provedor, dizem as mesmas fontes, lembrando que o mandato oficialmente só termina no fim do ano.
A gestão da casa também não escapa a críticas e há já quem diga que a "SCML precisa de um Paulo Macedo". Em causa está, por exemplo, o investimento com a compra de 55% da sociedade gestora do Hospital da Cruz Vermelha. "Comprou-se os encargos, a dívida, os ordenados, foi um negócio que ninguém percebeu; e agora quer-se vender."
Há também, dizem as mesmas vozes, necessidade de uma grande reforma nos recursos humanos, sendo que nos últimos anos a SCML aumentou consideravelmente o número de colaboradores, e de acelerar projetos como o lançamento das apostas em corridas de cavalos e reavaliar a internacionalização dos jogos.
Quanto à sucessão, também não são favas contadas. A antiga ministra da Saúde, Ana Jorge, que foi afastada por Edmundo Martinho do projeto de reconversão do antigo hospital militar da Estrela da SCML em unidade de cuidados continuados, é um nome consensual para substituir o atual provedor. O mesmo não se pode dizer de João Soares, que foi apontado há alguns meses para substituir Edmundo Martinho.