O milagre da educação

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Com as crianças de volta às aulas e finalmente sem máscaras, a situação nas escolas normaliza-se, no arranque do terceiro período do terceiro ano de pandemia. O que significa, voltar à miséria do costume. À exceção de se deixar, por fim, que os miúdos tentem voltar a conviver como crianças, a ver as caras uns dos outros, a partilhar sorrisos, afetos e lanches, não há motivo para felicidade. Com as máscaras, esfumou-se também toda e qualquer evolução que a pandemia chegou a ameaçar trazer.

Na reta final do terceiro ano letivo em pandemia, a escola digital é um flop total. Não só se perderam três anos de ensino - de todos os níveis de ensino... e os resultados disso ainda estamos para ver - como se gastaram milhões para não mudar nada. Mesmo porque as linhas traçadas para a mudança estavam erradas ainda antes de a pandemia vir demonstrar que é absurdo continuarmos a ter um sistema de ensino tirado a papel químico do de há 30 anos, maquilhado por reformas avulsas vomitadas por achómetro político e sem aferir resultados e responsabilidades.

O que temos há demasiado tempo é um sistema de ensino que há muito se desfoca do que verdadeiramente devia importar: ensinar a aprender, preparar para interpretar informação, para refletir, procurar pistas, saber distingui-las, criar as bases para pensar, abrir cabeças e prepará-las para serem inundadas com conhecimento, em vez de insistir em impingi-lo de uma boca para 60 ouvidos. E esse desfoque torna-se doloroso quando os miúdos chegam ao ensino superior, muitas vezes atirados para os cursos onde conseguiram entrar, ainda que não tenham vocação ou interesse neles, e já frustrados à chegada aos anos que mais definidores da sua vida deveriam ser.

Fala-se em digitalização e em como esta se revelou urgente e trouxe tanta e tão rápida transformação em tempos de pandemia, mas nas escolas o que há? No seu programa de governo, António Costa, já previa em 2019 que até 2023 todos os alunos do básico e secundário das escolas públicas (nem vale a pena entrar pela discriminação habitual...) teriam um computador. A covid trouxe necessidades que aceleraram contratos e promessas de entrega para abril de 2020. Resultados? A fechar abril de 2022, gastou-se mais de 260 milhões de euros em três anos de contratos com fornecedores, mas ainda há muitos computadores e hotspots por entregar.

E aqueles a quem chegaram as máquinas e a rede, com que frequência as usam? Nas aulas de TIC, uma hora e meia por semana.

E que formação foi dada aos professores para tirarem partido desses instrumentos, para se envolverem e utilizarem essas ferramentas para cativar, interessar e ensinar as crianças que têm a cargo? Há mais de 500 milhões previstos no PRR para a transição digital nas escolas... mas 300 milhões vão-se em questões inadiáveis como a "aquisição de recursos educativos digitais e outros meios para a desmaterialização de processos de avaliação, o fornecimento e instalação de videoprojetores", a expansão da conectividade da Rede de Educação e a compra de computadores para administrativos.

A idade média dos professores - sublinhe-se, média - está já acima dos 52 anos. Os que ensinam em Portugal são dos mais velhos e dos mais mal pagos da OCDE - os salários tiveram, de facto, uma redução de 6% nos últimos 15 anos. Acabámos de lhes pedir que se safassem sozinhos com quase 30 miúdos do outro lado do ecrã (os que os tinham), que os controlassem e ensinassem como pudessem, que se reinventassem e à profissão. Agora convocamo-los de volta às escolas para fazer o que sempre fizeram, com as ferramentas de sempre, desprovidos da autoridade que lhes foi sendo retirada década após década e sem que um olhar atento diagnostique problemas e aplique remédios que tragam saúde a um sistema educativo há muito fora de prazo.

Ainda haver crianças que aprendam e se interessem por alguma coisa é um verdadeiro milagre. Um milagre que uns poucos professores ainda conseguem fazer.

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