Foi dos primeiros a chegar lá, rue de Verneuil, 5bis. O chefe dos bombeiros arrombou a porta acompanhado do médico, e então entraram todos: a companheira Bambou, a filha Charlotte e ele, o fiel amigo. Tombado no chão do quarto, o cadáver nu, fulminado há várias horas por um ataque cardíaco mais que previsível. Tinham estado juntos na manhã daquele sábado, dia 2 de Março de 1991, e ele cometera a proeza rara, raríssima, de conseguir passar duas horas seguidas sem beber nem fumar. À tarde quis ficar sozinho, a trabalhar nas músicas de um novo disco. Morreu pouco depois, de coração, aos 62 anos. Foi enterrado no talhão judaico, junto aos pais, e, a par dos túmulos de Sartre, Beauvoir e Baudelaire, a sua campa ainda é das mais visitadas do cemitério de Montparnasse..Durante mais de 12 anos, Alann Parouty foi motorista de Serge Gainsbourg, experiência que relatou num breve e comovente livro de memórias, Serge, Mon Patron. Transportou-o madrugadas dentro pelas ruas de Paris, ouviu confidências das suas muitas mulheres, limpou-lhe a casa e a alma, passeou-lhe o cão e as angústias. Às noites, quando despejava o lixo da casa da rue de Verneuil, tinha o cuidado de retirar do caixote as intimidades do patrão, pois sabia que os fãs iriam vasculhar tudo em busca dos objectos mais ínfimos, até beatas dos cigarros fumados pelo seu ídolo (também Gainsbourg guardava como relíquia uma beata que o actor Robert Mitchum deixara apagada num cinzeiro do Hotel Raphaël). À porta de casa, jovens adolescentes namoravam abraçados e raparigas perdidas dormiam em sacos-cama, impedindo a entrada. Nas paredes da rua, grafitos devocionais ("Serge, tu es Dieu, je t'aime, je t"adore"; "Merci d'exister") e apelos jamais escutados: "Mange bien"; "Arrête de fumer". Um enorme mural, que ainda lá está, mostra um dos casais do século: Serge Gainsbourg e Jane Birkin, a inglesa lindíssima, magérrima, que gemeu "Je t'aime... moi non plus" para escândalo do mundo inteiro. Conheceram-se em Maio de 1968; ao princípio Jane não achou graça à pose arrogante dele, mas rapidamente cedeu à sedução da sua profunda timidez e imensa fragilidade. Foi Birkin, aliás, quem lhe mudou o visual e lhe deu o look rebelde que o imortalizou: cabelo desgrenhado e barba de três dias, o eterno cigarro ao canto da boca, sapatos Repetto brancos usados sem meias, calças jeans, blazer azul-marinho. Apenas os olhos, tristes que dói, eram dele, de mais ninguém..Serge Gainsbourg, como todos nós, foi um fruto do acaso. Quando estava grávida, a mãe pensara seriamente em abortar, só desistiu à última. Nasceram falsos gémeos: uma rapariga, Liliane, e um rapaz, Lucien. Imigrantes russos de ascendência judaica, os Ginsburg passaram momentos difíceis nesse ano de 1928: o pai era pianista de bares e cabarés, e a mãe, com formação de cantora de ópera, actuava ocasionalmente no conservatório russo. Durante a guerra, a família sentiu na pele as perseguições da Gestapo e, vendo ser-lhe retirada a nacionalidade francesa, refugiou-se clandestinamente nos arredores de Limoges, no pavor da deportação. Lucien foi obrigado a envergar a estrela de David, ainda que mais tarde tenha procurado recordar esse episódio com o seu habitual humor corrosivo e cáustico, dizendo que na infância usara uma "estrela de xerife" e que "nascera sob uma boa estrela... amarela". Em 1948, foi chamado a cumprir o serviço militar, no decurso do qual seria alvo de vários castigos por insubmissão e mau comportamento, tendo sido aí que aprendeu a tocar guitarra e se iniciou no consumo imoderado do álcool. Na infância e na juventude sonhara seguir Belas-Artes; no Louvre contemplou deslumbrado um quadro de Mantegna, O Martírio de São Sebastião, e ao longo de toda a existência cultivou a paixão pelos primitivos italianos e, naturalmente, pelas arrepiantes telas de Francis Bacon. A descoberta de Boris Vian foi, muito provavelmente, o momento-chave da trajectória de alguém que usou ao longo da carreira diversos nomes artísticos - Julien Gris, Julien Grix, Serge Gainsbourg, Gainsbarre, Gain-Gain - e que adoptou múltiplos registos criativos, da poesia à música, passando pelo cinema e pela pintura. Em nenhum deles se terá destacado pelo bom gosto ou pela qualidade estética, mas até nesse fracasso existe encanto e mistério, o misterioso encanto de Serge Gainsbourg..Apesar da fama de boémio e de ser um dos artistas mais populares de França, Gainsbourg preferia passar as noites sozinho em casa, raramente saía. Vivia, no entanto, no pavor de ser esquecido, e ciclicamente causava escândalo apenas para que falassem dele. Ficaram célebres algumas das suas aparições televisivas: num programa em directo, virou-se para uma jovenzinha Whitney Houston e disse-lhe na cara, impassível e grosseiro, que queria ter sexo com ela... A sua vida foi, de resto, uma vertiginosa sucessão de conquistas, algumas delas lendárias, em desarmante contraste com a fealdade física de um homem que se descrevia a si próprio como "cabeça de couve". "Tive as mais belas mulheres. Deixei-as porque todas me iam abandonar", confessou um dia ao seu motorista e amigo. A crer nas fotografias que expunha em casa, os seus maiores amores terão sido Brigitte Bardot, Jane Birkin e, nos últimos anos, Bambou, nome artístico de Caroline von Paulus, uma ex-modelo de origem vietnamita e alemã que se diz descender do famoso general Von Paulus, derrotado em Estalinegrado. Curiosamente, também o pai de Jane Birkin se destacou na Segunda Guerra e como comandante da Royal Navy teve um dia por missão transportar clandestinamente a França um resistente de nome François Mitterrand..Durante 12 anos de convívio íntimo, Alann Parouty foi motorista e empregado de Serge Gainsbourg, seu companheiro de farras (uma delas durou três dias e três noites, em completa loucura). Mas foi, acima de tudo, confidente discreto e amigo leal, a toda a prova, de horas boas e más. A sua dedicação a Gainsbourg era incondicional, sem limites, mas não se julgue que se tratou de uma relação clássica entre uma vedeta e o seu chauffeur. Se Alann venerava Serge, este dependia obsessivamente de Alann, que ficava horas a fio ao lado do amigo, no mais absoluto silêncio, quando ele precisava de sentir o calor de uma presença humana para compor a sua música. Os mais cínicos dirão que foi uma amizade servil, como se todas as grandes amizades não tivessem o seu quê de servil, ou de uma relação desigual, assimétrica, como se nos sentimentos e nos amparos tenha sempre de haver contas certas, totalmente equilibradas..Num dos seus mais célebres ensaios, dedicado à amizade, Montaigne resumiu a sua relação com La Boétie numa frase admirável, hoje convertida em lugar-comum. Perguntando a si próprio porque amava La Boétie, respondeu: "Porque era ele, porque era eu." Diz-se que, na primeira versão do escrito, Montaigne afirmou apenas que amava o seu amigo, nada mais. Anos depois, acrescentou que o amava "porque era ele". E, muitos anos depois, aditou ainda "porque era eu". Porque era ele, porque era eu. Porque Serge era Serge, porque Alann foi Alann. Ambos morreram já, e hoje ninguém se lembra de quem foi Alann Parouty. Mas este, enquanto foi vivo, nunca se esqueceu de quem foi Serge Gainsbourg, morto de coração aos 62 anos, e enterrado em Montparnasse. Ao velório compareceram milhares de pessoas, novos e velhos, muitas celebridades, gente do povo. Sobre o caixão deixaram flores, bíblias judaicas, maços de Gitanes, cigarros avulsos. No dedo do falecido, o anel de diamantes que ele oferecera à mãe com o dinheiro do primeiro salário; no pulso, um relógio que Jane Birkin lhe dera no apogeu do amor, e que ela levara de casa quando ambos se separaram; no peito, um urso de peluche vermelho, o primeiro presente de Gainsbourg para Lulu, o filho mais novo. O caixão baixou à terra na mais estrita intimidade. Estavam presentes apenas Jane Birkin, a filha Charlotte, a companheira Bambou. E o motorista, claro, porque era ele, porque eram eles..Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.