Razões de estarmos zangados

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Chamou-me a atenção o título de um livro publicado no passado mês de junho: Angrynomics (Columbia University Press). Nele, Mark Blyth, um professor de Ciência Política, autor do notável Austerity: The History of a Dangerous Idea (2013), e Eric Lonergan, um economista que é também gestor de fundos, lançam a ideia de uma economia política da zanga (raiva, fúria, ira). Não andamos todos tão zangados?

O pensamento dominante procura marcar como "populismo" a zanga das pessoas comuns, assumindo-a como perigo, mas desvalorizando-a como questionamento. É certo que todas as diferentes correntes da extrema-direita no mundo têm procurado cavalgar essa maré de raiva e desconfiança, muitas com a resposta clássica do "socialismo dos imbecis" (como Bebel designava o antissemitismo), a atribuição de todos os males que sofremos aos outros, aos estrangeiros, aos imigrantes, aos ciganos; outras apelando apenas a um retorno ao passado, forçosamente melhor, porque éramos todos mais jovens, mesmo que mais pobres, oprimidos e ignorantes. Mas o que funda a raiva permanece.

Blyth e Lonergan procuram traçar uma demarcação, distinguindo entre a raiva tribal, que leva ao encerramento do grupo dentro de si próprio e ao cimentar da sua coesão pelo ódio ao que lhe é exterior e o ultraje moral que nos provoca a contradição entre a promessa de prosperidade em que assenta o capitalismo e a realidade do trabalho precário, das baixas salariais, da erosão do Estado social e da insegurança das vidas, contraposta aos rendimentos crescentes do capital financeiro e dos seus titulares, em detrimento do capital produtivo.

A raiva das pessoas contra os elevados rendimentos dos poderosos e contra a evidência da corrupção é a manifestação desse ultraje moral que está ligado àquela common decency de que falava Orwell e que dia a dia vemos espezinhada. Mas é muito fácil apontar o dedo para que se não veja a lua: o que o populismo faz é criar em cada escândalo um bode expiatório que permita esconder a miséria de um sistema que constantemente está a reproduzir os vírus que infetam de indecência e injustiça a sociedade em que vivemos.

A justa luta que temos de travar contra o populismo antidemocrático, contra o populismo da exclusão e do ressentimento, do ódio e da regressão, não deve levar-nos a esquecer a necessidade de dar resposta, resposta transparente e clara de entender, resposta para além de aparências e de bodes expiatórios, resposta democrática, longe de justicialismos primários e basicamente decente, a esse sentimento de ultraje moral que corrói a coesão das nossas sociedades. O que não podemos é passar por cima desse comum agravo das pessoas comuns.

Escritor e diplomata

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