O pai de Fernando Pessoa era o crítico musical do DN

Interrogava-se a autora de uma tese de mestrado defendida em Coimbra há uns anos se "teria Fernando Pessoa preferido a arte musical dos sons à arte literária se não tivesse perdido tão precocemente, ainda na infância, o pai, Joaquim de Seabra Pessoa, amador e crítico de música". Sim, são muitas as incógnitas sobre o que teria sido a vida do poeta se aos 5 anos, morando ainda na casa no Largo de São Carlos onde nascera, não tivesse ficado órfão de pai, esquecendo pouco a pouco os momentos passados com o pai funcionário público quando este regressava já tarde da redação do Diário de Notícias, ali perto, no Bairro Alto, pois fazia crítica musical no jornal.

Descreveu João Gaspar Simões, numa pequena biografia de Pessoa, o pai do poeta como alguém que se dedicava com algum "brilhantismo" à musicologia, sendo suas "as pequeninas críticas musicais que o Diário de Notícias, então o mais lido jornal de Lisboa, inseria nas suas colunas".

Pequeninas algumas sim, e por vezes até nem sequer assinadas, mas outras nem tanto assim. Por exemplo, a 5 de fevereiro de 1878, uma crítica à ópera Aida, ocupou o terço inferior da primeira página do jornal, um texto que teria certamente mais de mil palavras e que terminava com a nota "conclui amanhã" antes da assinatura de Joaquim Pessoa (também conhecido como Joaquim de Seabra Pessoa). Filho de um general que se tinha ilustrado nas Guerras Liberais, tinha na época apenas 28 anos, mas era evidente que se realizava mais a trabalhar da redação situada na Rua dos Calafates (depois, Rua do Diário de Notícias) do que nas instalações do Ministério da Justiça, o emprego oficial, aquele que lhe permitia sustentar uma família depois de se casar com Maria Magdalena em 1887. Menos de um ano depois, a 13 de junho de 1888, dia de Santo António, nasceria Fernando Pessoa.

Sobre a qualidade, o tal "brilhantismo", das críticas musicais publicadas há mais de um século diz hoje Bernardo Mariano, musicólogo, depois de ler o artigo dedicado a Aida: "O artigo de Joaquim Pessoa é a 1.ª parte de um díptico dedicado à Aida, publicado na véspera e no dia da estreia dessa ópera em Portugal (Teatro de São Carlos, 6 de fevereiro de 1878). Nele, o autor mostra conhecimento musical da obra, o que pressupõe que lhe fosse familiar a partitura ou que tivesse assistido a representações fora de Portugal - estreada no Cairo, a 24 de dezembro 1871, a Aida chegou às principais capitais europeias nos anos seguintes (p. ex. Paris: 1876), ou ainda que tivesse lido recensões e artigos detalhados sobre a mesma."

Acrescenta Bernardo Mariano que "Joaquim Pessoa mostra conhecer os ventos estéticos" que então sopravam, quando coteja a criação de Verdi com a de Wagner (que só chegará a Lisboa em março de 1883), Meyerbeer (feito regularmente cá) ou Gounod: o debate sobre Verdi em Itália ou o wagnérisme em Paris ser-lhe-iam familiares. Mostra conhecer bem o repertório genérico, quando cita Gluck, ou a evolução estilística em Rossini e em Meyerbeer, para lá, é claro, das óperas anteriores de Verdi. Está também muito bem informado sobre a história performativa e a sorte crítica e demais opiniões expressas até então sobre a Aida. Mostra ainda conhecer com detalhe os cenários e pormenores da produção de estreia no Cairo (ou esteve presente, ou viu bastantes reproduções - litografias - publicadas em revistas, dessa e de ulteriores produções). Em suma, mostra-se conhecedor e bem informado".

A primeira colaboração de Joaquim Pessoa no Diário de Notícias terá sido publicada a 9 de outubro de 1876, e o terá aqui tem que ver com o facto de o estilo ser o dele mas a crítica não estar assinada. A ligação ao DN foi duradoura (até 1892, quando a doença já devia fazer grande mossa) e o crítico surge mesmo numa fotografia tirada na redação do jornal e onde estão, diz a legenda, "um grupo de redatores e colaboradores efetivos do Diário de Notícias".

A morte do colaborador a 13 de julho de 1893 não passou despercebida ao jornal, que lhe dedicou na edição do dia seguinte um obituário a dizer que "a família perde um bom e extremoso chefe" "e nós um amigo leal e ilustrado e um dos nossos mais antigos e zelosíssimos empregados". A data de início da colaboração que surge nessa nota fúnebre é 1868, apenas quatro anos depois da fundação do jornal por Eduardo Coelho, mas Manuel Cadafaz de Matos, antigo redator do DN que escreveu muito sobre Joaquim Pessoa e teve acesso a notas pessoais conservadas por uma meia-irmã de Fernando Pessoa, considera 1876 o ano correto.

Antiga diretora da Casa Fernando Pessoa, Manuela Júdice comenta o possível impacto da morte do pai no futuro poeta: "Creio que poucas ou nenhumas referências musicais existem na obra de Fernando Pessoa. Recusa em lembrar o pai?" Por outro lado, sublinha Manuela Júdice, "o segundo casamento da mãe, parece-me, poderá não ter sido muito bem querido por Fernando Pessoa".

E depois de perder também o irmão mais novo, Jorge, dá-se então essa ida de Fernando Pessoa para a África do Sul, onde o padrasto era diplomata. Uma experiência de distanciamento de Portugal que terá sido dura, mas que também trouxe o mergulho da criança lisboeta na língua inglesa (teria Harold Bloom incluído Pessoa no seu O Cânone Ocidental sem os poemas escritos em inglês?).

Nas suas notas, Joaquim Pessoa refere muito o pequeno Fernando, sempre presente, mesmo quando o pai tentava recuperar da tuberculose em Telheiras, na casa de um médico amigo. Sobre a influência de um sobre o outro, do pai sobre o filho, voltamos à incógnita do início.

E Fernando Madail, num artigo publicado em 2008 no DN, interrogava-se também: "Se não tivesse morrido jovem que influência teria exercido em Fernando Pessoa? Nunca se saberá se a poesia ganhava ou perdia com a não ida para Durban do órfão do melómano."

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