Isto aconteceu no início de Outubro: um realizador de cinema com mais de 70 anos explicou durante uma entrevista que não considerava os filmes de super-heróis "cinema", mas antes algo mais parecido com "um parque de diversões". Não é novo e já aconteceu antes. O que não costumava acontecer é que, ao longo das semanas seguintes, todos os realizadores de cinema com mais de 70 anos receberam telefonemas a recolher depoimentos sobre o assunto. O que também não acontecia era a possibilidade de, se passarmos tempo suficiente online e carregarmos em todos os botões certos, sabermos o que pensam sobre isto duzentas pessoas diferentes e obrigarmos outras cinquenta a saber o que nós pensamos..Às primeiras impressões, o caso parece um exemplo simples de clivagem geracional. Kingsley Amis dizia que não gostava de ler romancistas mais jovens porque ficava sempre com a sensação de estar a ouvir uma única mensagem: as coisas já não são dessa maneira; agora são desta maneira. Há um vídeo de um youtuber português intitulado "Luta na piscina com os meus amigos!" Se o mostrarmos a um realizador de cinema com mais de 70 anos, é provável que ele pense qualquer coisa como "isto são oito minutos de adolescentes a brincar numa piscina". Caso se aventure em considerações públicas mais incisivas, é provável que alguém o informe de que esse vídeo foi visto por seiscentas mil pessoas, muitas delas com opiniões fortes sobre quem o fez (alguém, já agora, que ganha por ano o mesmo que ganha o actual treinador do Benfica). É até possível que algumas dessas pessoas achem que "Luta na piscina com os meus amigos!" merece mais do que números impressionantes: que merece prémios, lugares em museus e aclamação crítica consensual..Uma das respostas comuns a Scorsese (a de James Gunn, entre outros) foi lembrá-lo de que outras fórmulas convencionais do passado também foram criticadas em termos semelhantes, antes de ganharem legitimidade crítica. Talvez os filmes de super-heróis sejam os novos westerns? A resposta era previsível, que mais não seja porque não há nada que aconteça agora que não tenha acontecido antes, e meter as fichas todas na correcção póstuma de injustiças críticas é uma boa aposta 50% das vezes, mas a comparação específica com os westerns parece espúria. Uma comparação mais correcta será com outras franchises (como a saga James Bond) ou então outra antiga fórmula de estúdio especializada, e com cujos orçamentos, efeitos estéticos e limites artificiais os filmes de super-heróis têm muito mais em comum: os épicos bíblicos - com os seus espectáculos guiados por efeitos especiais, colecções de actores de renome e personagens reconhecíveis em histórias familiares..Embora semanticamente camuflado como argumento estético, as declarações de Scorsese, suspeita-se, são essencialmente uma crítica a um modelo económico e publicitário que se assemelha a uma profecia de domínio hegemónico com a capacidade de se autocumprir. Mas até esta análise pode estar errada, tendo em conta a maneira como estes diferentes vocabulários se esborratam selectivamente uns nos outros. Tal como alguns super-heróis, as dinâmicas culturais ganham as suas histórias de origem a posteriori e Scorsese parece estar a comunicar com base nos termos de uma história de origem específica: aquela em que o "cinema" como ele o entende existe nos intervalos entre alguns momentos-charneira. A história foi contada de várias maneiras, mas há um esqueleto comum: a "renascença" do cinema americano (na qual Scorsese participou) depois de Bonnie & Clyde e de o fim do Código Hays terem permitido uma explosão de qualidade determinada pelo talento individual; e a sequela, uma década mais tarde, em que dois filmes feitos por amigos de Scorsese (Tubarão e Guerra das Estrelas) criaram a era do blockbuster, do filme-evento, do apelo a fatias demográficas mais vastas e do reassumir de controlo por parte dos estúdios..Estas histórias não são falsas, mas, como todas as narrativas de síntese e arrumação cultural, são necessariamente redutoras e selectivas, forçadas a ignorar todas as peças que não encaixam. Não é difícil, ainda assim, olhar para o panorama dos últimos 15 anos e concluir que pessoas como Scorsese achem estar a atravessar uma versão com esteróides da segunda parte da história..Mas a história sobre o período hegemónico dos filmes de super-heróis ainda não pode nem quer ser contada, por motivos óbvios: porque ainda vivemos com as causas e não apenas com as consequências. O que se pode fazer é dar palpites em tempo real sobre essas consequências, da mesma maneira que a arquitectura da comunicação online nos encoraja a dar palpites sobre tudo: rapidamente, concisamente e com tremenda convicção. Se duzentas pessoas dizem que um filme é uma obra-prima e a nossa reacção for achá-lo razoável, a tentação não é afundar esse veredicto moderado no clamor, mas recalibrá-lo tacticamente para "lixo". Ninguém se pode dar ao luxo de perder muito tempo a comparar padrões, até porque há outros assuntos para tuitar, e "obra-prima" e "lixo" são dois modos eficazes de abreviar um debate penoso..É importante reiterar (e Scorsese concordaria) que não há qualquer propriedade intrínseca na "história sobre super-heróis" que impossibilite a sua transformação numa obra-prima cinematográfica, tal como não existe qualquer defeito intrínseco que proíba obras-primas literárias sobre bêbedos irlandeses a tentar chegar a casa ou padres colombianos que levitam depois de beber cacau. Só que as segundas obras-primas já aconteceram, tal como aconteceram as obras-primas do western. As primeiras ainda não. Pode ser uma questão de tempo, ou não. Também pode ser que o actual modelo Disney não seja propício a produzir trinta westerns ridiculamente maus (como Cowboy Holiday ou Paint Your Wagon), intercalados com dois ou três High Noon e Rio Bravo, mas sim um modelo especificamente desenhado para produzir quatro versões dos Dez Mandamentos por ano, a intervalos regulares, e produzir colateralmente quatrocentos milhões de adeptos imediatos, porque toda a gente já ouviu falar na Bíblia. As coisas já não são dessa maneira, agora são de outra maneira..Mas transportar a discussão para avaliação qualitativa acaba por ser a abordagem menos interessante, porque, na verdade, nenhum destes filmes é "mau" e nenhum destes filmes é "muito bom". A profusão de meios técnicos e de métodos para recolher e integrar feedback dos consumidores reduz ao mínimo a margem para acidentes. Como Scorsese reconheceu, a competência técnica envolvida no universo Marvel é inegável, e essa competência não se limita à tecnologia, mas também à fluência nos dialectos online e na facilidade em produzir nacos de diálogo, piadas e imagens que parecem microprogramados para terem uma segunda vida enquanto referências, memes ou gifs. Mais do que entretenimentos capazes, estes filmes são muito bons a criar as condições para serem relevantes e inescapáveis. Nenhum deles é certamente uma obra-prima, por qualquer definição razoável de "obra-prima", e não o é pelos mesmos motivos que nenhuma lata de Pepsi é uma obra-prima. Há demasiadas latas iguais e demasiadas latas parecidas, e demasiados profissionais a certificar-se de que nada de inesperado acontece às latas. Não existem latas de Pepsi canónicas ou latas de Pepsi catastróficas. O que existe são pessoas que gostam de Pepsi e pessoas que não gostam de Pepsi, e pessoas que acham que "Pepsi é vida", e pessoas que se irritam com quem diz que há mais bebidas além da Pepsi, e pessoas que não se importam de embrulhar material promocional em terminologia crítica (se alguém da Pepsi estiver a ler isto, eu sou facilmente subornável e conheço vários polissílabos)..Quando passar tempo suficiente para ajustarmos os efeitos culturais deste período à história mais apelativa para contar, é inteiramente possível que tanto os números como os vocabulários culturais tenham sofrido tamanhas alterações que os realizadores veteranos da saga Marvel estejam condenados a controvérsias iguais, mas diferentes: milhares de pessoas a acusá-los de elitismo e a querer saber o que é que têm contra a última trilogia "Luta de Amigos na Piscina" no YouTube.
Isto aconteceu no início de Outubro: um realizador de cinema com mais de 70 anos explicou durante uma entrevista que não considerava os filmes de super-heróis "cinema", mas antes algo mais parecido com "um parque de diversões". Não é novo e já aconteceu antes. O que não costumava acontecer é que, ao longo das semanas seguintes, todos os realizadores de cinema com mais de 70 anos receberam telefonemas a recolher depoimentos sobre o assunto. O que também não acontecia era a possibilidade de, se passarmos tempo suficiente online e carregarmos em todos os botões certos, sabermos o que pensam sobre isto duzentas pessoas diferentes e obrigarmos outras cinquenta a saber o que nós pensamos..Às primeiras impressões, o caso parece um exemplo simples de clivagem geracional. Kingsley Amis dizia que não gostava de ler romancistas mais jovens porque ficava sempre com a sensação de estar a ouvir uma única mensagem: as coisas já não são dessa maneira; agora são desta maneira. Há um vídeo de um youtuber português intitulado "Luta na piscina com os meus amigos!" Se o mostrarmos a um realizador de cinema com mais de 70 anos, é provável que ele pense qualquer coisa como "isto são oito minutos de adolescentes a brincar numa piscina". Caso se aventure em considerações públicas mais incisivas, é provável que alguém o informe de que esse vídeo foi visto por seiscentas mil pessoas, muitas delas com opiniões fortes sobre quem o fez (alguém, já agora, que ganha por ano o mesmo que ganha o actual treinador do Benfica). É até possível que algumas dessas pessoas achem que "Luta na piscina com os meus amigos!" merece mais do que números impressionantes: que merece prémios, lugares em museus e aclamação crítica consensual..Uma das respostas comuns a Scorsese (a de James Gunn, entre outros) foi lembrá-lo de que outras fórmulas convencionais do passado também foram criticadas em termos semelhantes, antes de ganharem legitimidade crítica. Talvez os filmes de super-heróis sejam os novos westerns? A resposta era previsível, que mais não seja porque não há nada que aconteça agora que não tenha acontecido antes, e meter as fichas todas na correcção póstuma de injustiças críticas é uma boa aposta 50% das vezes, mas a comparação específica com os westerns parece espúria. Uma comparação mais correcta será com outras franchises (como a saga James Bond) ou então outra antiga fórmula de estúdio especializada, e com cujos orçamentos, efeitos estéticos e limites artificiais os filmes de super-heróis têm muito mais em comum: os épicos bíblicos - com os seus espectáculos guiados por efeitos especiais, colecções de actores de renome e personagens reconhecíveis em histórias familiares..Embora semanticamente camuflado como argumento estético, as declarações de Scorsese, suspeita-se, são essencialmente uma crítica a um modelo económico e publicitário que se assemelha a uma profecia de domínio hegemónico com a capacidade de se autocumprir. Mas até esta análise pode estar errada, tendo em conta a maneira como estes diferentes vocabulários se esborratam selectivamente uns nos outros. Tal como alguns super-heróis, as dinâmicas culturais ganham as suas histórias de origem a posteriori e Scorsese parece estar a comunicar com base nos termos de uma história de origem específica: aquela em que o "cinema" como ele o entende existe nos intervalos entre alguns momentos-charneira. A história foi contada de várias maneiras, mas há um esqueleto comum: a "renascença" do cinema americano (na qual Scorsese participou) depois de Bonnie & Clyde e de o fim do Código Hays terem permitido uma explosão de qualidade determinada pelo talento individual; e a sequela, uma década mais tarde, em que dois filmes feitos por amigos de Scorsese (Tubarão e Guerra das Estrelas) criaram a era do blockbuster, do filme-evento, do apelo a fatias demográficas mais vastas e do reassumir de controlo por parte dos estúdios..Estas histórias não são falsas, mas, como todas as narrativas de síntese e arrumação cultural, são necessariamente redutoras e selectivas, forçadas a ignorar todas as peças que não encaixam. Não é difícil, ainda assim, olhar para o panorama dos últimos 15 anos e concluir que pessoas como Scorsese achem estar a atravessar uma versão com esteróides da segunda parte da história..Mas a história sobre o período hegemónico dos filmes de super-heróis ainda não pode nem quer ser contada, por motivos óbvios: porque ainda vivemos com as causas e não apenas com as consequências. O que se pode fazer é dar palpites em tempo real sobre essas consequências, da mesma maneira que a arquitectura da comunicação online nos encoraja a dar palpites sobre tudo: rapidamente, concisamente e com tremenda convicção. Se duzentas pessoas dizem que um filme é uma obra-prima e a nossa reacção for achá-lo razoável, a tentação não é afundar esse veredicto moderado no clamor, mas recalibrá-lo tacticamente para "lixo". Ninguém se pode dar ao luxo de perder muito tempo a comparar padrões, até porque há outros assuntos para tuitar, e "obra-prima" e "lixo" são dois modos eficazes de abreviar um debate penoso..É importante reiterar (e Scorsese concordaria) que não há qualquer propriedade intrínseca na "história sobre super-heróis" que impossibilite a sua transformação numa obra-prima cinematográfica, tal como não existe qualquer defeito intrínseco que proíba obras-primas literárias sobre bêbedos irlandeses a tentar chegar a casa ou padres colombianos que levitam depois de beber cacau. Só que as segundas obras-primas já aconteceram, tal como aconteceram as obras-primas do western. As primeiras ainda não. Pode ser uma questão de tempo, ou não. Também pode ser que o actual modelo Disney não seja propício a produzir trinta westerns ridiculamente maus (como Cowboy Holiday ou Paint Your Wagon), intercalados com dois ou três High Noon e Rio Bravo, mas sim um modelo especificamente desenhado para produzir quatro versões dos Dez Mandamentos por ano, a intervalos regulares, e produzir colateralmente quatrocentos milhões de adeptos imediatos, porque toda a gente já ouviu falar na Bíblia. As coisas já não são dessa maneira, agora são de outra maneira..Mas transportar a discussão para avaliação qualitativa acaba por ser a abordagem menos interessante, porque, na verdade, nenhum destes filmes é "mau" e nenhum destes filmes é "muito bom". A profusão de meios técnicos e de métodos para recolher e integrar feedback dos consumidores reduz ao mínimo a margem para acidentes. Como Scorsese reconheceu, a competência técnica envolvida no universo Marvel é inegável, e essa competência não se limita à tecnologia, mas também à fluência nos dialectos online e na facilidade em produzir nacos de diálogo, piadas e imagens que parecem microprogramados para terem uma segunda vida enquanto referências, memes ou gifs. Mais do que entretenimentos capazes, estes filmes são muito bons a criar as condições para serem relevantes e inescapáveis. Nenhum deles é certamente uma obra-prima, por qualquer definição razoável de "obra-prima", e não o é pelos mesmos motivos que nenhuma lata de Pepsi é uma obra-prima. Há demasiadas latas iguais e demasiadas latas parecidas, e demasiados profissionais a certificar-se de que nada de inesperado acontece às latas. Não existem latas de Pepsi canónicas ou latas de Pepsi catastróficas. O que existe são pessoas que gostam de Pepsi e pessoas que não gostam de Pepsi, e pessoas que acham que "Pepsi é vida", e pessoas que se irritam com quem diz que há mais bebidas além da Pepsi, e pessoas que não se importam de embrulhar material promocional em terminologia crítica (se alguém da Pepsi estiver a ler isto, eu sou facilmente subornável e conheço vários polissílabos)..Quando passar tempo suficiente para ajustarmos os efeitos culturais deste período à história mais apelativa para contar, é inteiramente possível que tanto os números como os vocabulários culturais tenham sofrido tamanhas alterações que os realizadores veteranos da saga Marvel estejam condenados a controvérsias iguais, mas diferentes: milhares de pessoas a acusá-los de elitismo e a querer saber o que é que têm contra a última trilogia "Luta de Amigos na Piscina" no YouTube.