O seu dia de amanhã

As máquinas funcionarão sozinhas e saberão o que é melhor para você - ou você se julga capaz de discutir com elas?
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Tendo levado a vida a catar as chaves nos bolsos das calças para abrir a porta do apartamento e a tatear as paredes à procura do comutador de luz, e, só depois de tirar os sapatos e atirar longe o casaco, me sentar diante da TV e tentar achar algo interessante para assistir e relaxar, temo ser em breve obrigado a mudar de hábitos.

Na nova versão, assim que eu chegar à porta do meu apartamento, uma câmara ou um olho mágico me reconhecerá e abrirá a porta automaticamente. A luz se acenderá a um simples comando de voz da minha parte - algo como "luzes da sala, acendam-se". E o mesmo quanto à televisão: ela ligar-se-á sozinha a um estalo de dedos de minha parte ou a uma piscadela d"olhos. E como ela saberá o que quero assistir? Não me pergunte - ela adivinhará.

É mais ou menos assim que várias reportagens em revistas científicas ou mesmo em jornais comuns estão descrevendo nosso dia-a-dia no futuro próximo - e bem próximo, porque tudo o que eles descrevem já existe e, alguns, apenas não foram ainda comercializados. Não apenas as luzes se acenderão sozinhas.

Tudo funcionará por conta própria ou a uma ordem verbal. O ar condicionado regulará a temperatura a ideais 22 graus, não importa a estação lá fora. Cortinas se abrirão ou fecharão automaticamente, determinando a quantidade de luz externa que deve ou não entrar em seu apartamento - e, se por acaso você discordar da decisão tomada por elas e tentar alterá-la manualmente, as cortinas voltarão a abrir-se ou a fechar de acordo com o que elas acham correto. Você ainda não aprendeu que não adianta brigar com os aparelhos automáticos? Eles sabem o que é melhor para você.

Suponha que você queira jantar, mas esteja com preguiça de sair de casa. Uma simples mensagem para um restaurante das proximidades e a escolha do que quer comer pela ementa eletrónica, e pronto. Em menos de 20 minutos, a bandeja com a comida lhe será entregue e colocada em sua mesa por um emissário sem que uma única palavra tenha sido trocada. Isso, como você sabe, já existe, e explica por que tantos restaurantes estão diminuindo seus antigos e lindos salões e ampliando suas já enormes cozinhas - porque quase ninguém mais os frequenta e quase todos lhes pedem comida por telefone.

Bem, finalmente, tendo jantado, quem vai lavar os pratos e copos? Ninguém. Não há nada para lavar. Tudo - pratos, copos, o que houver sobrado da comida, talheres, guardanapos - vai para o lixo, onde, poucas horas depois, já estará sendo reciclado e transformado em novos pratos, copos, talheres e guardanapos, ou, quem sabe, em alguma fonte de energia nuclear.

Enceradeiras, aspiradores de pó e outros utensílios de limpeza já terão passado o dia funcionando na sua ausência para que, ao chegar em casa, você tenha encontrado tudo em ordem. É verdade que, para isto, você precisará ter programado algumas instruções para os equipamentos antes de sair pela manhã.

E, como os aparelhos foram programados originalmente em inglês, é nesta língua que você deverá ter dado as instruções. Se o seu domínio do inglês é insuficiente para comunicar-se com eles, lamento informá-lo de que, se não conseguir aprimorá-lo em algum curso de línguas, a única alternativa, sendo você brasileiro ou português, será matar-se. Ou você vai querer que as máquinas aprendam a nossa língua?

É possível que, enquanto você estiver em casa, os seus eletrodomésticos tenham resolvido por conta própria entrar em funcionamento. Afinal, são eles que sabem a melhor hora para entrar em ação, e você que se adapte a eles - para não correr o risco de ficar tropeçando neles pela casa. Supondo que, para ter um pouco de sossego, você resolva ir para a rua, também já não será necessário pegar o carro na garagem.

Você já não terá carro e o seu prédio já não terá uma garagem. Bastará chamar pelo celular um carro autómato. Ele sairá de onde estiver, avisará que está à sua porta, lhe dará bom-dia ou boa-noite e o conduzirá ao destino. Isto feito, voltará sozinho para de onde saiu e que você não sabe onde fica, nem lhe interessa. Essa nova prática está decretando a morte de várias profissões e funções - táxis, mecânicos, estacionamentos, aluguer de carros, motoristas particulares -, mas e daí? Os cavalos e mulas também foram aposentados pelos carros a motor há pouco mais de cem anos e ninguém se lamentou por eles.



Assim que você entrar nesse sistema de automatização, uma central de informações começará a coletar dados a seu respeito - suas preferências em comida, roupas, diversões, hábitos de consumo. Mais um pouco e saberá tudo sobre suas preferências sexuais, posições políticas e opções intelectuais - se prefere, por exemplo, Aldous Huxley a George Orwell ou Elizabeth Taylor a Marilyn Monroe. Estou a delirar, claro. Nomes como os de Huxley e Orwell, ou Marilyn e Liz Taylor, que fazem parte do passado, não constarão do repertório da central. Esta decidiu que eles nunca existiram.

E é bom você acreditar nela - ou ela provará também que você não existe.

Jornalista e escritor brasileiro, autor de, entre outros, Bilac Vê Estrelas (Tinta-da-China)

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