A História tem mitos destes. Ao contrário do que muitos julgam, o cartaz vermelho com os dizeres "Keep Calm and Carry On" não animou o moral dos britânicos durante a Segunda Guerra. Causa espanto sabermos que o célebre poster só foi conhecido há um par de anos e que conquistou fama planetária graças à Internet, o mais eficaz instrumento de propaganda do nosso e de todos os tempos. É hoje, muito provavelmente, o cartaz mais conhecido do mundo, mas desconhece-se sequer quem foi o seu autor, quem teve a ideia, quem o concebeu e o desenhou. Um livrinho editado o ano passado pelo Imperial War Museum, da autoria de Bex Lewis, conta-lhe a história em poucas páginas..Por alturas da Grande Guerra de 1914-18, e nos tempos vindouros, a palavra "propaganda" perdera a sua conotação original (do latim propagare = expandir, divulgar) e adquiriria uma carga negativa, sendo associada ao belicismo germânico ou a ardis abjectos de manipulação dos povos. Apesar disso, foi em larga medida devido aos cartazes e aos panfletos propagandísticos produzidos em massa pelos comités de recrutamento que, por alturas de Dezembro de 1914, mais de um milhão de jovens ingleses se tinha voluntariado para combater no front..Cyril Kenneth Bird, cartoonista do Punch desde 1916 com o pseudónimo de "Fougasse" - e que mais tarde será autor de vários dos mais famosos cartazes da Segunda Guerra Mundial -, dissertou então sagazmente sobre a função dos cartazes de rua: primeiro, tinham que atrair a atenção dos passantes, atarefados no bulício urbano, com a atenção convocada por mil e uma coisas; segundo, tinham de os persuadir a fazer algo, não através da demonstração racional de um dado argumento mas através da sugestão, insinuada com subtileza, de que praticar determinada acção era desejável; em terceiro e último lugar, os cartazes tinham de convencer quem os lia durante o tempo suficiente para os levar a agir, ou seja, tinham que cobrir o défice de atenção, digamos assim, que sempre surge entre o momento em que se observa uma mensagem e o momento em que se decide fazer o que nela é sugerido. Para o efeito, afirmava "Fougasse", os cartazes tinham de ter uma mensagem simples e directa, capaz de ser assimilada instantaneamente por quem os observava e de por estes ser retransmitida a terceiros. Só assim se cumpriria a sua finalidade propagandística, só assim a mensagem do cartaz seria aumentada em larga escala, literalmente propagada. O destinatário deveria participar nesse jogo de palavras, cores e imagens, sentir que não era um mero espectador passivo do que lhe diziam: a mensagem, apesar de simples, teria de ser 90% óbvia mas deixar 10% para a descodificação de quem a lia, pois só assim despertaria a sua atenção e, acima de tudo, mobilizaria a sua acção em resultado do que fora observado..As bombas nazis caídas sobre Londres demonstraram a importância crucial da propaganda de rua, pois era aí que a guerra agora estava, bem próxima, visível em cada escombro. Os cruéis tempos do Blitz mostraram que a guerra já não era coisa só de soldados que combatiam numa trincheira distante. A aviação trouxera o conflito para os bairros residenciais de Londres, e até sobre o Palácio de Buckingham caíram bombas, o que motivou regozijo na Rainha-Mãe, que chegou a dizer que doravante já podia encarar de frente os martirizados habitantes do East End. O teatro de guerra alastrou à frente doméstica, as fronteiras entre civis e combatentes esbateram-se e a população inteira, toda ela directamente afectada pelo conflito, era chamada a lutar; qualquer um poderia ser um herói sob o epíteto "cidadão-soldado". Para esse esforço colossal, sem precedentes, Neville Chamberlain não tinha especial confiança no poder da propaganda, o mesmo acontecendo com o seu sucessor, Winston Churchill. Ainda assim, após a invasão dos Sudetas pela Alemanha, foi reinstaurado o Ministério da Informação (MOI), que fora extinto após a Primeira Guerra. Sob a égide de Lord Macmillan, e de vários ministros que lhe sucederam até 1945, o MOI levou a cabo diversas campanhas, por vezes a pedido de outros ministérios, como o da Saúde (na campanha para a evacuação), o dos Abastecimentos (promoção do racionamento e da poupança) e o da Agricultura (na mobilização "Dig for Victory"). O MOI sabia que as bombas de Hitler e os avanços e recuos da guerra estavam a desgastar de forma brutal o ânimo psicológico de uma população em choque, de nervos em franja, apavorada ao toque das sirenes e ao troar das antiaéreas..Apontam-se alguns nomes de possíveis criadores do celebérrimo poster, dos quais o mais provável é Ernest Charles Wallcousins, ilustrador e pintor que já tinha desenhado vários cartazes para o London Transport. Tudo sugere, no entanto, que a obra terá sido fruto de um trabalho colectivo, com os criativos do MOI a procurarem uma mensagem que, diziam, fosse "imediatamente atractiva", "universalmente apelativa" e que "incitasse à acção" mas que, ao contrário dos estafados posters da Primeira Guerra, não usasse as palavras "we" ou "you". Foram abandonadas as sugestões iniciais que envolviam a palavra "liberdade" por se entender que era um conceito demasiado abstracto e académico num país em que 75 % da população tinha abandonado os estudos antes de chegar aos catorze anos. Uma das primeiras versões dizia "Keep Calm. Do Not Panic" e outra proclamava "Keep Steady", mas um funcionário superior do MOI considerou-as pouco inspiradoras. Chegou-se finalmente a um consenso em que prevaleceu a conselho imperativo e firme "Keep Calm and Carry On", a par de outros dizeres igualmente sancionados pelo secretário do Interior Samuel Hoare, como "Your Courage, Your Cheerlfulness, Your Resolution Will Bring us Victory". Alguns testes demonstraram que o público reagia melhor à cor vermelha do que ao azul-marinho e foi dada a ordem para a impressão de dois milhões e meio de cópias em onze formatos diferentes. Decidiu-se que ficariam armazenadas para serem afixadas logo após um bombardeamento mais violento, mas só muito poucas, quase nenhumas, viram a luz do dia e foram efectivamente usadas. Ao que parece, o MOI considerou que, apesar de tranquilizadora, aquela mensagem era um castigo suplementar para uma população já tão flagelada pelas bombas e pelo pânico, um lembrete desnecessário da agrura dos tempos então vividos. Outros sustentam que o cartaz só deveria ser usado se acaso os alemães invadissem Inglaterra, razão pela qual nunca saiu dos depósitos do Ministério da Informação..Durante a guerra foi estabelecido entre o MOI e o Imperial War Museum que este receberia, para memória futura, exemplares de todas as obras de propaganda então produzidas. Mas, estranhamente, não lhe foi enviada qualquer cópia de "Keep Calm". Em 2000, o dono da Barter Books, um alfarrabista de uma cidadezinha do Northumberland, descobriu alguns exemplares do cartaz no fundo de uma caixa de livros comprados num leilão. Emoldurou um deles e colocou-o na loja. Muitos visitantes quiseram comprar uma cópia e Stuart Manley, assim se chamava o livreiro, imprimiu cinquenta exemplares, esgotados num ápice. Um artigo saído no Guardian em 2005, com sugestões de presentes para o Natal, despertou a atenção do país inteiro para a obra-prima, da qual hoje só restam pouquíssimos originais, avidamente disputados pelos coleccionadores, que os pagam a peso de ouro. Não se sabe onde páram os dois milhões e meio de cartazes impressos em 1939.."Keep Calm" é um prodígio de comunicação: a coroa real e o formato dos dizeres transmitem uma noção de solidez e resiliência, a contenção formal e a sobriedade do desenho e a mensagem nele inscrita são uma síntese perfeita da alma britânica e da sua fleuma lendária. O branco destaca-se sobre um fundo vermelho aberto, o tamanho das letras tem a marca de uma autoridade firme e serena, respeitadora da individualidade de cada um. Melhor era impossível..Não por acaso, é nos nossos dias que "Keep Calm" se tornou um ícone global, com a sua mensagem directa e simples, com a espantosa modernidade do seu design. Na age of anxiety, como lhe chamou o poeta W. H. Auden, o cartaz de 1939 é um poderoso conselho de auto-ajuda, remédio mais eficaz do que bibliotecas inteiras de literatura "motivacional". Provavelmente, precisamos dele mais agora, em alturas de Brexit, do que outrora, nos cruéis tempos do Blitz. Não se sabe quem o fez, mas quem o fez, fê-lo bem feito..Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.